domingo, 17 de janeiro de 2010

O coração cura o corpo - parte 2

O trabalho foi o remédio: não havia tempo para pensar no que não poderia ser, nem o que poderia. Fim de ano é o período em que todos se lembram que tem algo a fazer, e você que se vire pra realizar. Mas a noite... Apenas Deus sabia o que se passava. Talvez não falar fizesse a coisa parecer menos assustadora.

A tarde do dia seguinte trouxe o fim da tensão. Quando atendi o telefone e reconheci a voz, tive a vaga sensação de que seria uma notícia trágica. Conviva com isso e se conforme de jamais poder parir, ou então, adote uma criança. No entanto, aquela voz anasalada e firme, disse da forma mais direta e nua possível: cirurgia marcada para semana que vem, de emergência. Hã? Peraí, semana que vem é Natal! Meu trabalho, minha família, eu... vou aí amanhã. Novamente sentada na cadeira do consultório vi que seria inútil protestar. Ou seria assim ou carregaria um monte de nada, de 7 cm até o dia em que fosse obrigada por força da dor a retirar todo o útero e ser condenada a compartilhar com minhas comadres o amor de dois meninos, como sendo o mais próximo de filhos. A quinta-feira começou com uma lista de providências a serem tomadas antes de ficar exatamente nas mãos de Deus.

Como uma máquina movida à lenha, trabalhei exaustiva e ardentemente em toas as frentes, correndo contra o tempo, dia-a-dia vencendo o medo crescente e esmagando com a unha alguma furtiva vontade de chorar. Coloquei-me no verdadeiro lugar da mulher prática, e mulheres assim não perdem tempo com lamentações quando existe a possibilidade, por menor que seja, de dar a volta por cima. Na véspera, o expediente terminou as 23:30h, e poderia ter ido além, não fosse a pressão para jantar antes de meia-noite, hora do jejum absoluto.

Na manhã seguinte, um dia bonito se fez, com Sol e céu azul, certamente a forma que Deus encontrou de me encorajar para o que estava por vir. O pensamento negativo era inevitável, os “e se” vez por outra borbulhavam na mente. E se desse errado? E se eu não voltasse? E se...? Não havia muito tempo pra divagações, se desse errado e eu morresse, disse para Deus, obrigada pela maravilhosa oportunidade de ter vivido tudo isso. No táxi, com os olhos escondidos sob os óculos escuros, ouvindo Pedro Mariano, decidi que não havia porque ter medo: eu fui feliz até aqui.

Já internada, as sete e meia da manhã, ao lado de meus fiéis escudeiros, pus-me a fotografar os momentos finais da vida. Não da minha vida, apesar de ter controlado o medo, ainda pensava positivamente. O fim era de uma vida complicada e enferma. Quando eu voltasse, seria uma mulher se preparando para ser mãe.

As horas se arrastaram até que o barulho da maca no corredor. Um princípio de panico me ocorreu. Murmurei um “eu não vou” tão inaudível, felizmente, que somente eu sei que foi a única vez em que o medo voltou e me bateu com força. E finalmente quando a maca invadiu o quarto e eu deveria deitar e ir rumo ao que mudaria tudo, tirei o cordão em que carregava dois amores, respirei fundo, sorri e pulei da cama, tensa, porém consciente de que só a minha calma daria o tom da operação.

Pronta e coberta, antes de deitar procurei pelo abraço dela. Tão forte e quente que me fez sentir novamente menina, protegida e mais amada que nunca. Quando me deitei, finalmente, ela disse, com um sorriso: “Vai com Deus. Se comporta. Mamãe tá aqui.” E enquanto a maca me afastava do quarto, eu senti aquela mão tão macia no meu braço, uma mãe que me seguia com os olhos enquanto deixava o coração me acompanhar.

Deitada ali, percorrendo os corredores e andares até o centro cirúrgico, pensei em tantas coisas quantas foram possíveis naquela situação. Não tinha mais medo. Tudo que queria era não sentir dor. Levando em consideração a cirurgia do nariz, o período pós-anestésico foi o mais terrível de todos, algo como o osso quebrado a sangue-frio. Quantos sacrifícios uma mãe faz, até mesmo quando ainda não o é. Eu poderia simplesmente não passar por aquilo, mas por alguém que eu nem sei ainda quem é, decidi enfrentar. E isso não é nem de longe o pior pelo que passam as mães. A minha, por exemplo, estava lá embaixo aflita, perdendo um dia de trabalho para acompanhar a filha já adulta e independente, que poderia muito bem estar sozinha. Poderia, mas coração de mãe não sabe disso. O corpo gera e pari, mas o coração embala e carrega por toda a vida.

Continua...

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