Minhas
escolhas haviam me obrigado a mudar de vida. Estava de volta ao lar que tinha
abandonado, que já não era mais o mesmo. Nada era, nem mesmo os amigos eram.
Novos amigos não tardaram a chegar. E aí se desenhou um novo capítulo da minha
história.
Em
meio a tantos conflitos internos, dor e arrependimento, eu ainda tinha que
lidar com a vontade de arrancar do peito um malogrado amor. No meio desse
turbilhão de emoções, alguém me chamou a atenção. Não pelo carinho ou
gentileza, pelo contrário: a marra e a arrogância me aguçaram os sentidos.
Semanas se passaram até que estivéssemos naquele momento em que o beijo é
inevitável. Apesar disso, do alto de sua arrogância, ele esperou que eu tomasse
a iniciativa. E eu, que não deixava por menos, não arredei o pé. Fui puxada com
força e engolida por um longo beijo numa noite de domingo. Dias depois eu
descobri que a tal arrogância era só um disfarce pra não ficar muito na cara
que ele ansiava por aquele momento desde o primeiro dia em que pusera os olhos
em mim. Descobri uma pessoa além do amiguinho que dançava pagode comigo aos
domingos: era também e principalmente um ser humano do bem, muitíssimo educado
e bem criado, gentil e alto astral.
Durante
um ano e meio fui rainha desse nobre, não havia vontade que não fosse
satisfeita. Minha farra com as amigas pelos bailes funk da vida não acabou quando
o namoro começou: na verdade, ganhou mais um participante. Passamos por
momentos bons, outros ruins, mas nada grave. Com ele não havia o fantasma da
traição rondando. Mas havia outro: a minha incapacidade de aproveitar o que a
vida me oferecia de bom.
Eu
tinha apenas 19 anos, cabeça vazia, sem rumo, confusa. Prestes a completar 21
nossa vida em comum acabou, pois eu decidi que queria viver outra paixão. E uma
semana após o rompimento, ao me ver na rua com o novo amor, ele nos
cumprimentou usando toda sua educação e humildade. Eu sabia o quão doloroso
aquilo estava sendo para ele, afinal ele me amava. Duas semanas após ele me
procurou para conversar. A amizade continuava e forte ainda. No meio do papo
soltou que havia ficado com uma conhecida nossa, mas que só havia ficado porque
precisava me esquecer. Chorei, doeu bem fundo essa “traição”. Senti que o tinha
perdido de verdade. Nos abraçamos e fizemos amor pela última vez ― foi a melhor de todo o tempo que
passamos juntos.
Nossos
caminhos se descruzaram de vez quando ele se mudou para outra cidade. Teve dois
filhos e se casou duas vezes. Anos depois nos encontramos por acaso na rua. Final
de expediente na Rua da Carioca, muita gente correndo de um lado pra outro, mas
nós nos vimos no meio da multidão. Aquele corpo não era o que eu havia
conhecido: estava muito melhor. O rosto havia endurecido pela idade e
responsabilidades, mas o espírito conservava a alegria de viver. Conversamos
por várias horas, sobre tudo e todos, inclusive nós. Nessa noite eu descobri
que eu havia sido a única mulher que ele amou de verdade e que ainda me amava
um pouco. Desejei voltar no tempo e descobrir um jeito de retribuir esse
sentimento. Quando nos despedimos, a palavra que silenciosamente brilhava entre
nós era “infelizmente”.
A
distância encurtou com a internet, onde raramente nos falávamos. Há cerca de quatro
meses, ele me chamou no bate-papo do Facebook:
Ele: gostaria
de agradecer
Eu: pelo
q?
Ele: por vc ter feito parte da
minha vida
pois sempre foi uma mulher maravilhosa comigo
acho que nunca agradeci pelo momentos maravilhosos
que vivemos juntos
vc foi e sempre vai ser uma mulher marcante na
minha vida
Fiquei
sem reação. Não esperava que depois da minha atitude, ele ainda conservasse
esse carinho por mim. Pedi perdão, mas ele não achou que precisasse. No fundo,
o pedido era para mim... Outra vez surgiu a vontade de conversar como na noite
após o trabalho. E com ele eu sempre soube que conversa era conversa: ele
sempre me respeitou. Combinamos, mas no dia não consegui me desvencilhar do
namorado. Iria ao cinema com meu afilhado e depois encontrar com ele, mas o “namorado”
descobriu que eu tinha telefone, depois de passar dias sem falar comigo. Não
fui e não tornamos a tocar no assunto.
Esta
semana me trouxe um evento que há tempos queria conhecer. Com o passar dos anos
me distanciei da minha realidade na favela, dos amigos, de tudo. A festa seria
uma celebração dessas amizades com pessoas que vivem os mesmos dramas e
alegrias. Adiei uma viagem só para ir. Na sexta-feira pela manhã, antes de ir
pro trabalho, entrei no Facebook como nunca faço. Ele estava on line e
perguntou se eu iria a festa. Confirmei e nos despedimos. A noite de sábado
chegou chuvosa e eu fui rever pessoas, conhecer outras, dançar muito e beber
quase nada. Com quase uma hora de festa rolando, alguns convites pra beijos no
fim da noite e algum ânimo pra aceitá-los. Tudo estava indo muito bem até ele
aparecer.
Passou
de longe, mas tão bonito e alto que o achei. Cortei pelo meio da multidão na
quadra até encontrá-lo e ganhar um sorriso franco e fabuloso, seguido de um
abraço apertado, demorado, carregado de saudade. Ele me soltou, abraçou de
novo, ficamos em silêncio assim, porque as palavras eram desnecessárias. Com um
super salto 15 eu ainda estava mais baixa que ele e era perfeito sentir a
segurança daquele corpo outra vez. Quando acabou, chegamos pro lado para conversar
melhor. Depois das perguntas de praxe sobre nossas famílias, uma força maior o
movimentou e ele se inclinou e me beijou. Não foi um super beijo de novela,
tampouco um selinho de amigo. Foi um beijo de um amor que estava gritando “eu
ainda estou vivo!” Não me opus, não questionei, apenas retribuí. Ele me tomou
pela mão ― sim, pela
mão como nos bons tempos ― e me levou
com todo orgulho pela quadra, rumo a saída. Apesar de ser alto e forte, a
postura dele melhora quando me carrega pela mão, sempre foi assim.
Saímos
da quadra e subimos a ladeirinha até a entrada da padaria. Tudo que estava
engasgado foi dito. Eu fui muito honesta quando disse que não me arrependia de
ter terminado, pois fiz o que me pareceu ser certo naquele momento, mas admitia
que havia agido errado. Falamos de muitas coisas, muitas verdades que nunca
tivemos coragem de dizer. Naquela época, ele me revelou, as mulheres davam mole
pra ele porque queriam saber o que ele tinha de tão especial pra ter conseguido
ficar com uma mulher como eu. Novamente ouvi que eu tinha sido a mais amada por
ele, só que dessa vez meu coração doeu. Tão bonito ali na minha frente, tão
querido e gentil, honesto, simpático, simples e honrado como nenhum outro foi.
Queria ir embora, ele não deixou. Fui envolvida num abraço que se desfez num
beijo, desta vez sem carinho. Foi pesado, conduzido por uma saudade violenta,
com uma nota de mágoa. Sim, era essa a palavra: mágoa. Com uma mão na minha
nuca e outra na cintura, ele se afundava em mim com saudade e um desespero
magoado. Quando nos soltamos, minha vontade era de sumir dali com ele, chutar
todos os baldes do caminho e fazer uma nova história, mas não dependia só de
mim, então silenciei.
Decidimos
voltar pra festa, pois já deveríamos ser o assunto da noite mesmo... Descemos
sem mãos dadas, mas foi só entrar na quadra pro elo se restabelecer. E a música
seguinte foi o pagode, bom e velho, igual ao que tocava quando tudo começou. Eu
estava em alfa-ômega! Ele me tomou pelo braço e começou então a me levar por
planetas fantásticos de alguma galáxia distante. Fechei os olhos e encostei a
cabeça no peito dele enquanto deixava que ele me rodasse pelo salão. Ao final
da primeira música, pensei, ele vai dançar com outra. Tudo bem, fico aqui no
canto. Mas a segunda música foi minha também. Abri os olhos: muitos
acompanhavam nossos movimentos. Quando acabou, ele queria ir embora comigo ― e eu também, mas estava tão feliz
ali com os amigos, queria dançar mais ―,
então ficamos. Com as amigas, minhas leais amigas desde sempre, dancei todas,
desde o funk até “Ilariê”. De vez em quando ele aparecia pra demarcar o
território e afastar os urubus que chegavam perto. Isso sempre foi algo que eu
admirei no nosso relacionamento: ele me deixava super a vontade pra curtir com
minhas amigas, contudo, sem me abandonar ou me sufocar. Quando os primeiros
raios de Sol ameaçaram despontar no horizonte, ele foi me buscar. Caminhamos
até o Casarão, lá onde namoramos nos primeiros dias. Eu precisava tirar o salto,
então ele me levou até a porta de casa ― e não se ofereceu pra entrar ―, pus um vestidinho leve e o chinelo
e fomos caminhar pelo morro.
Um
dos nossos problemas era meu espírito aventureiro e o dele caseiro que não
davam liga. Dessa vez não precisei falar nada, quando percebi estávamos no
Campão. Como testemunha só o dia nublado tentando amanhecer.
Já
na porta de casa outra vez, fiquei olhando ele se afastar até sumir do meu
campo de visão. Ele se foi e deixou o cheiro suave no meu cabelo, pescoço, colo,
mãos. Ele se foi e me deixou uma saudade boa. Ficou o calor no peito e na alma,
o carinho no coração e no corpo. Ele se foi e as dúvidas ficaram também. Mas
com essas não estou preocupada: o tempo é o senhor de tudo.
“Vem
que o sol raiou
Os
jardins estão florindo
Tudo
faz pressentimento
Que
esse é o tempo ansiado
De
se ter felicidade”
Roberta
Sá cantou essa música no DVD Samba Social Clube, chamada Pressentimento, de
Elton Medeiros.
Lucille