As
lembranças nos dão rasteira, traem, trapaceiam pra ganhar sobrevida na memória
que falha ─ pelo tempo ou por necessidade mesmo.
Falei para
minha mãe fazer um recibo para o pedreiro, com nome e CPF, pra documentar o
pagamento. Vim para o computador procurar um modelo pronto, abri a caixa de
pesquisa e digitei "recibo". Apareceram vários documentos que
continham a palavra recibo: teste de DP, material de aula e até texto do blog
de 2009. Quando abri o texto, achei uma coisa que escrevi em maio...
Era uma tarde fria de um
domingo silencioso. Ou o contrário. Não me lembro mais. A Rua Sorocaba,
enfeitada de árvores altas e encimada por pedras portuguesas, seria o abrigo, o
refúgio de um corpo sem alma e sem sombra. Eu não era eu, era o restinho de
alguém que não aprendera ainda a ser dura consigo mesma. Quando fui recebida
naquele lugar vazio, só havia entre nós um profundo sentimento de amor. Amor
terno e paciente. Amor caridoso. Amor apenas. Enquanto eu falava e falava, mãos
bem talhadas me corriam pelo rosto. Enquanto eu era apenas eu, não havia
recriminação, nem conselho. Só ouvidos. Em verdade, eu estava feliz de estar
lá. Vi uma borboleta entre as árvores. Vi duas. Muitas borboletas passeavam por
lá. Lá me encontrei, perdida em mim mesma. À sombra dos coqueiros, respirei
fundo, olhei pra televisão e apertei o Off. Na rua das borboletas.
Depois
de mais uma das milhares brigas com o noivo, depois de mais uma vez desfazer o
relacionamento que eu sabia que reataria em breve (porque no fundo era o que eu
queria), em meio a tristeza profunda, muito mais por não aguentar mais não
saber lidar com aquele relacionamento abusivo do que por realmente ter
terminado, saí da casa do ex e no caminho até o ponto de ônibus, sem forças pra
admitir que estava errada em insistir no sofrimento, saquei o telefone da bolsa
e pedi ajuda a quem estava sempre disposto a me receber com o abraço mais
seguro do mundo. Mesmo durante o expediente ele se dispôs a me receber e ajudar
a catar meus caquinhos.
Tanto
amor cabia naquele abraço de Maurício... Tantas palavras se tornavam
desnecessárias quando ele me acolhia naqueles braços. Não bastava tirar a
aliança e esconder na bolsa: eu deveria ter aprendido a tirar, devolver, e com
dedos e peito nus, me entregar à delícia de ser querida, bem tratada e amada.
Porque era isso que ele tinha pra mim sempre que estávamos juntos,
especialmente nos dias de sol, domingos regados a muito carinho e paciência e
conversa e labaredas.
Era uma tarde quente de um domingo agitado. Fim de um ciclo,
início de outro. Lembro bem. Segui com o queixo empinado, firme e resoluto,
rumo a um fim de noite com aborrecimentos. O sol se punha sem pressa. Com
flores nos olhos fui recebida. Joguei as armas tão longe que nunca mais as vi.
Subi as escadas me dando em sacrifício, como uma virgem sendo entregue ao
todo-poderoso deus da luxúria. Debruçada sobre o muro da enorme varanda, lá do
alto olhei para o ontem. Gostei, senti saudade, suspirei e sorri. Quando
rodopiei, estava numa valsa insana, ofegante, em malabarismos e
contorcionismos, prestes a alcançar a estrela mais distante do vazio céu. Havia
ali doces inverdades e vontades sufocadas. Não havia sequer resquício de medo.
Eu estava segura, firme e de pé. Eu não era eu, era uma bruxa, enredada no
próprio feitiço. Lá me perdi. E corri ainda mais, pra não ter de me achar tão
cedo. Enquanto o carro abria caminho pelas ruas escuras, sorri, olhei para o
teto e pedi bis. Na vila do por do sol.
Quando
encontrei sem querer esse texto, me senti pequena novamente, frágil e
solitária. E isso não é ruim, pelo contrário, é bom ter essas sensações
temporárias ─ porque é isso de fato que são: temporárias. Hoje tudo isso surge
em cima de uma força que transcende o corpo, que limita a atuação de pessoas
negativas, que me mantém distante do que eu nunca consegui evitar. Agora eu
sei. E senti uma saudade gigante do meu Mau, do amigo, do amor, do homem que soube
me receber, mesmo quando eu não podia me dar, que foi importante, que me
arrancou sorrisos, que me fez ficar na ponta dos pés pra dar beijo, que me
cobriu com abraço e paz.
A vida
naturalmente descruzou nossos caminhos, também e talvez principalmente, porque
eu escolhi continuar a história que já vivia e da qual precisava mesmo de
qualquer forma, pois talvez não estivesse pronta pra outra como aquela que se
desenhava com ele.
Fui
longe hoje. Achei um monte de lembrança perdida, menos o modelo. Vou ter que
digitar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por vir e por ler!
Fique a vontade para comentar, sua opinião é muito bem-vinda.