sábado, 8 de julho de 2017

O bem do Mau

As lembranças nos dão rasteira, traem, trapaceiam pra ganhar sobrevida na memória que falha ─ pelo tempo ou por necessidade mesmo.



Falei para minha mãe fazer um recibo para o pedreiro, com nome e CPF, pra documentar o pagamento. Vim para o computador procurar um modelo pronto, abri a caixa de pesquisa e digitei "recibo". Apareceram vários documentos que continham a palavra recibo: teste de DP, material de aula e até texto do blog de 2009. Quando abri o texto, achei uma coisa que escrevi em maio...

Era uma tarde fria de um domingo silencioso. Ou o contrário. Não me lembro mais. A Rua Sorocaba, enfeitada de árvores altas e encimada por pedras portuguesas, seria o abrigo, o refúgio de um corpo sem alma e sem sombra. Eu não era eu, era o restinho de alguém que não aprendera ainda a ser dura consigo mesma. Quando fui recebida naquele lugar vazio, só havia entre nós um profundo sentimento de amor. Amor terno e paciente. Amor caridoso. Amor apenas. Enquanto eu falava e falava, mãos bem talhadas me corriam pelo rosto. Enquanto eu era apenas eu, não havia recriminação, nem conselho. Só ouvidos. Em verdade, eu estava feliz de estar lá. Vi uma borboleta entre as árvores. Vi duas. Muitas borboletas passeavam por lá. Lá me encontrei, perdida em mim mesma. À sombra dos coqueiros, respirei fundo, olhei pra televisão e apertei o Off. Na rua das borboletas.

Depois de mais uma das milhares brigas com o noivo, depois de mais uma vez desfazer o relacionamento que eu sabia que reataria em breve (porque no fundo era o que eu queria), em meio a tristeza profunda, muito mais por não aguentar mais não saber lidar com aquele relacionamento abusivo do que por realmente ter terminado, saí da casa do ex e no caminho até o ponto de ônibus, sem forças pra admitir que estava errada em insistir no sofrimento, saquei o telefone da bolsa e pedi ajuda a quem estava sempre disposto a me receber com o abraço mais seguro do mundo. Mesmo durante o expediente ele se dispôs a me receber e ajudar a catar meus caquinhos.
Tanto amor cabia naquele abraço de Maurício... Tantas palavras se tornavam desnecessárias quando ele me acolhia naqueles braços. Não bastava tirar a aliança e esconder na bolsa: eu deveria ter aprendido a tirar, devolver, e com dedos e peito nus, me entregar à delícia de ser querida, bem tratada e amada. Porque era isso que ele tinha pra mim sempre que estávamos juntos, especialmente nos dias de sol, domingos regados a muito carinho e paciência e conversa e labaredas.

Era uma tarde quente de um domingo agitado. Fim de um ciclo, início de outro. Lembro bem. Segui com o queixo empinado, firme e resoluto, rumo a um fim de noite com aborrecimentos. O sol se punha sem pressa. Com flores nos olhos fui recebida. Joguei as armas tão longe que nunca mais as vi. Subi as escadas me dando em sacrifício, como uma virgem sendo entregue ao todo-poderoso deus da luxúria. Debruçada sobre o muro da enorme varanda, lá do alto olhei para o ontem. Gostei, senti saudade, suspirei e sorri. Quando rodopiei, estava numa valsa insana, ofegante, em malabarismos e contorcionismos, prestes a alcançar a estrela mais distante do vazio céu. Havia ali doces inverdades e vontades sufocadas. Não havia sequer resquício de medo. Eu estava segura, firme e de pé. Eu não era eu, era uma bruxa, enredada no próprio feitiço. Lá me perdi. E corri ainda mais, pra não ter de me achar tão cedo. Enquanto o carro abria caminho pelas ruas escuras, sorri, olhei para o teto e pedi bis. Na vila do por do sol.

Quando encontrei sem querer esse texto, me senti pequena novamente, frágil e solitária. E isso não é ruim, pelo contrário, é bom ter essas sensações temporárias ─ porque é isso de fato que são: temporárias. Hoje tudo isso surge em cima de uma força que transcende o corpo, que limita a atuação de pessoas negativas, que me mantém distante do que eu nunca consegui evitar. Agora eu sei. E senti uma saudade gigante do meu Mau, do amigo, do amor, do homem que soube me receber, mesmo quando eu não podia me dar, que foi importante, que me arrancou sorrisos, que me fez ficar na ponta dos pés pra dar beijo, que me cobriu com abraço e paz.
A vida naturalmente descruzou nossos caminhos, também e talvez principalmente, porque eu escolhi continuar a história que já vivia e da qual precisava mesmo de qualquer forma, pois talvez não estivesse pronta pra outra como aquela que se desenhava com ele.


Fui longe hoje. Achei um monte de lembrança perdida, menos o modelo. Vou ter que digitar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por vir e por ler!
Fique a vontade para comentar, sua opinião é muito bem-vinda.