Estava pensando numa frase do meu querido e amado escritor Mario Quintana. Uma frase, possivelmente imortalizada em algum de seus livros, exposta num site qualquer de frases-impactantes-pra-deixar-alguém-impressionado-com-sua-inteligência-e-nível-cultural.
Quando fechei os olhos e pensei no significado daquela frase, entendi que existem pessoas que não compreendem o poder das palavras, e tampouco poderiam compreender outra frase de Antoine de Saint-Exupery.
Lanchando com colegas de outros setores, descobri que um deles carrega nos olhos uma doença chamada daltonismo, que o impede de distinguir cores básicas. Fiquei fascinada com a história. Pela primeira vez conheci uma pessoa com este distúrbio que me intriga. Como será ver a vida em preto e branco? Será pior do que não vê-la? Tive que pedir desculpas, não estava encantada com o problema, mas sim com a forma como ele lidava com aquilo. Certamente, lida da mesma forma como a outra colega lida com a ausência de uma das pernas. A mais sorridente, a mais animada e aquela que me tira um sorriso até quando a raiva ameaça explodir. Ela, em outra ocasião, me contou como era subir o morro de muletas ou com a recém-adquirida prótese. Falou da dor, da esperança, do descaso dos motoristas de ônibus, e, acima de tudo, dos gatos que chovem na horta dela. Mais divertida, impossível. E, nesta tarde, ele estava me contando como é ver um pacote de biscoito vermelho em tom de abóbora, ou um copo azul, em tom verde. E, com um demorado sorriso, da vontade da esposa em pintar a casa de verde, cuja tinta ele já havia comprado no cartão de crédito, que assim sairia mais barato.
Quando voltei à mesa, fiquei lendo aquelas palavras com certa pena. Um ser humano nasce com braços, pernas e visão perfeita e ainda assim consegue ser um deficiente de percepção e sensibilidade. Isso entristece e empobrece minha alma. Sinto vontade de correr de volta pelo caminho, e pedir a L. que me mostre outra vez a perna que não existe mais, apenas o buraco e a pele que pende do quadril. Quero pedir ao P. que volte a contar suas confusões na hora de pedir algo pela cor, inclusive uma simples pasta plástica na papelaria. Sinto que as pessoas com dificuldades reais são as que mais sabem o sentido e dão valor a cada vírgula da vida, tanto a própria quanto dos que os rodeiam.
Em contrapartida, quem sabe o poder do excesso, tende a não compreender o valor do simples, do pouco, do frágil.
E sentimento não é bem durável.
Especialmente o alheio.
O ano era algum entre 1986 e 1988. Era hora do almoço e havia apenas um ovo cozido, cercado por alguns pares de olhos miúdos. Quem levaria a melhor sobre o ovo? Quem teria o privilégio de ficar com toda a gema? O menor do grupo? O mais velho? A resposta veio ao encontro da dúvida: “Se Jesus Cristo repartiu um pedaço de pão entre doze, nós podemos dividir um ovo igualmente entre quatro”.
Daquela tarde em diante, nunca mais esqueci o peso da palavra compartilhar. E espero que minha prima e meu irmão ainda guardem esta, que foi uma das maiores e mais importantes lições de amor e compaixão que nossa Mamãe poderia nos dar, ela que jamais pisou numa sala de aula, que não fez licenciatura em Letras, não leu os maiores autores do país, que não será bacharel em alguma coisa, mas que, do alto de seus quase 80 anos de história e amor dividido, foi capaz de se dar tanto a cada um de seus dez filhos, quanto aos dezesseis netos e dois bisnetos.
Muita coisa hoje fez sentido, inclusive “Tu te tornas responsável por aquilo que cativas”. Sendo assim, não há o que se reclamar quanto ao que recebes, certo?
E, como ultimamente eu ando em paz demais, graças a Deus, deixo que o vento leve o Quintana e suas antologias poéticas, porque delas já tirei o sumo, do qual fiz meu alimento pra continuar a caminhada.
“Amizade é um amor que nunca morre”
L.