terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Convalescença

Não deu tempo de despedir, nem desejar Feliz Natal.
Mas, sim, está tudo caminhando como deveria. Infelizmente, a dor e o inchaço ainda não me permitem passar tempos por aqui, porém, assim que tudo estiver cicatrizado - desta vez, apenas fisicamente - não tardo a voltar.
Com amor, saudade e o desejo de um ano melhor.
L.

domingo, 6 de dezembro de 2009

O que eu não quero mais escrever

Algumas pessoas ainda me perguntam o que exatamente eu quis dizer com determinado texto ou frase. E, claro, eu esclareço. Não há problema em revelar a verdade, mas perde-se a magia da história escrita quando ela fica muito óbvia.

Querem ver?

Cheguei lá sob fina chuva. Não foi difícil achar o laboratório, que era um prédio inteiro no meio da avenida mais importante do bairro. Falei com a recepcionista, que me mandou para o segundo andar. Fiquei quase uma hora esperando, com fome, cansada e dolorida demais. Meu antebraço parecia uma bola. Quando não deu mais agüentar, fui ao banheiro e chorei. Sozinha naquele lugar, me senti muito mais triste do que realmente devia estar. Quando a enfermeira me levou, o choro veio quente outra vez e segurei até quando ela me deixou só de novo. Enquanto me vestia, pensava que felizmente o roupão não era aquele azul horroroso de hospital normal. Era creme, quentinho, quase um carinho. Como se nada fosse o suficiente pra me deixar cada vez pior, a médica decidiu fazer uma verificação maior e a enfermeira voltou com uma agulha de um metro e meio, quase um cano de água. Enfermeira é um bicho mentiroso, todas elas usam aquela frase “você não vai sentir nada” pra logo depois fazerem o paciente urrar de dor. E, tremendo de frio, fome e uma tristeza enorme, lá fui para a grande ressonância. “Tem fobia de lugar fechado?” Ai, meu Deus... Deitei, fui presa pelos pés, barriga e confortavelmente embrulhada num edredom digno dos Alpes suíços. Me senti o mágico que é acorrentado, preso na caixa, passa pela serra elétrica, pelo fogo e depois da aflição do público, sai lindo e louro. O técnico, tão bonito quanto gentil, colocou ainda protetores auriculares para amenizar o barulho da máquina. Barulho? Que barulho? Isso é exame ou tortura? Ele sorriu e respondeu “Já foi em rave?”. Então lentamente fui entrando no buraco da máquina gigante e gelada, que ainda por cima tem música eletrônica. A máquina parou na metade do caminho e a enfermeira terrorista voltou. Pensei que ela iria me furar de novo, pra novamente injetar o remédio que dá aceleração do coração. Aí eu estaria feita: amarrada, no buraco e tendo um ataque cardíaco! Mas ela foi apenas estender meus braços, pois apenas minhas mãos ficariam fora do buraco da máquina. Nada mais tendo a fazer para me deixar pior, a máquina tornou a me engolir. Fechei os olhos, não queria ver o quão presa estava. Tive receio de ver e entrar em pânico. Por precaução, o técnico charmosão me deu uma pequena bola que era uma campainha, para o caso de precisar chamá-lo. O meu estado era lastimável: absolutamente sozinha, dentro e fora da sala, amarrada pelos pés, com uma chapa pesada sobre a barriga, braços estendidos sobre a cabeça, um cano de água enfiado no braço direito, o mesmo braço machucado poucas horas antes, uma sirene na outra mão, coração palpitando e com frio, apesar de coberta. Apesar de tudo, não dava pra sentir pena de mim mesma. Tinha que me concentrar em manter a calma. Finalmente senti a minha respiração voltar contra meu rosto e entendi que a parede do buraco estava a centímetros do meu rosto. Automaticamente busquei o botão da sirene, mas não apertei, precisava apenas ter certeza de que estava mesmo com o dedo em cima. E então o show começou. Era uma rave realmente e as caixas de som estavam em cima do meu ventre, sentia a barriga vibrar, até os ossos da bacia. Várias músicas foram tocadas, enquanto eu sentia tudo de olhos bem fechados, rezando para chegar algum sono. Outra vez a enfermeira interrompeu a festa pra injetar o remédio. Não dei nenhum pio dessa vez. E ela não satisfeita, pegou meu braço justamente no ponto inchado, depois ficou apertando a agulha contra minha veia. E nem assim eu disse ai. Continuamos, mas dessa vez, respirando fundo e prendendo o ar. Sentir o golpe magnético e sem poder respirar me roubou o resto de força. Repetimos ainda mais umas cinco músicas, até que, sem força para mais nada, senti a máquina estender sua língua para fora e me devolver à luz.

...

Levantei-me com a sensação magna de ter feito um esforço sobre-humano. Não tinha dor, nem frio, apenas o cansaço. Busquei o abraço do conforto e não encontrei. Procurei a palavra amiga, o olhar terno de ajuda e percebi como era funda a solidão da sala de vestir. A fome me açoitava, o frio ria-se alto. Consegui alcançar a rua. Onde não havia frio, porém a chuva lamentosa banhava a tarde. Como em caça ao tesouro, puxei da bolsa o pão de centeio para aplacar o dia que se findava em jejum absoluto. Como tivesse passado o terror, a tristeza e a vergonha reassumiam seus postos. Subitamente, a água que escorria pelo rosto ficou quente. Não era a chuva. Era o produto de uma dor honesta e merecida, quase devida. O corpo, a experiência disse, superaria logo. Mas a culpa ardia em brasa na consciência, o que era claro, tardaria a passar.

É, a primeira parte ficou mais leve, apesar do momento tenso de uma ressonância magnética. Deu até pra achar engraçado. Mas a segunda, hum, há que se pensar um pouco mais e até imaginar. Tão melhor do que saber é dar a cara que quiser.

Escrever é mais do que entreter, é ser cúmplice de quem lê e deixar a melhor parte para o leitor: fechar os olhos e dar vida ao texto.

E hoje, tudo que eu queria, era que alguém pudesse ler o texto não escrito e dar vida a ele. Outra vida.

L.