quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O fim de uma jornada - parte II

Quase um mês de férias, tempo que eu precisava para recarregar a bateria e me lançar em área que eu nunca tinha atuado. Fazer Recrutamento e Seleção requer uma forte dose de paciência, tolerância e uma veia artística, porque entrevistar sem deixar transparecer certas impressões ao candidato é uma verdadeira atuação em filme de suspense. E ainda tinha a tarde livre, tempo fundamental para prosseguir com o projeto final.

Fazer uma monografia parece difícil, todos os colegas universitários que não compraram as suas no Zé Moleza, afirmaram que era cansativo. Nada disso é verdade. Produzir uma monografia é extremamente cansativo, desgastante, angustiante, estafante, difícil e pesado! Ah, e elevado a décima potência. Comprei os dois primeiros livros ainda nas férias, um mês antes de retomar o último período na faculdade. Meu tema inicial seria Inclusão de Pessoa com Deficiência, porém como é um assunto novo, não há muita literatura disponível, a não ser na internet que não é uma fonte confiável. Queria mostrar que a pessoa não perde a capacidade laborativa pela falta de algum membro ou sentido; ela pode se readaptar, afinal, essa é uma das maiores capacidades do ser humano: transformar. E trabalhando com duas pessoas com deficiência física e auditiva percebi o quão mesquinha é a sociedade por achar que existe limite para a vontade de viver do outro. Pensei também em Benefícios, que é minha área de atuação original, mas achei um assunto de literatura igualmente limitada, afinal, as organizações brasileiras entendem que “benefícios” sejam o vale-transporte e o vale-refeição, porém o primeiro é obrigatoriedade definida em lei e o segundo, por sua dispensabilidade, é também conhecido como vale-coxinha. rs Então repensei novamente a estratégia e finalizei com Qualidade de Vida no Trabalho, tema cuja vastidão encontra diversos autores e alguma concordância sobre os pontos principais.

Eu não queria apenas o trabalho: o desafio de falar sobre algo que eu não dominava era o alimento para o investimento pesado no projeto. Na primeira semana de aula eu já ia dormir as 2h da manhã, pesquisando tudo que me aparecia sobre o assunto, autores, práticas, empresas, enfim, tudo o que contribuísse para confirmar a minha teoria de que o investimento em QVT pressupõe o estímulo para manter pessoas motivadas e o consequente aumento da produtividade. Claro, não era o descobrimento da roda, mas é um assunto pouco levantado em rodas de RH devido ao custo que estes programas costumam ter — e RH não gosta de custo, gosta de investimento. Mergulhei de peito aberto, temerosa, mas feliz e ansiosa pelo resultado.




(Continua)


L.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O fim de uma jornada - parte I

Sinto tudo diferente do que costumava ser. E não faz muito tempo: parece que em menos de seis meses consegui localizar o ponto nevrálgico que era responsável por transformar um objetivo de vida em algo secundário por uma bobagem qualquer.

Não foi tarefa fácil, tampouco foi difícil. Sempre soube de quem era a responsabilidade por fazer e acontecer, por realizar e colher os frutos do sucesso — bem como os espinhos do fracasso. Só precisava decidir, finalmente, se eu queria ser páreo pra minha própria força, uma força bruta e estúpida que por diversas vezes me levava a cabecear a parede como quem se deita num travesseiro de penas de ganso.

A meta eu sempre tive. Demorei a focar, mas sabia que precisava cumprir o que eu havia definido como objetivo de vida. Muitas e incontáveis vezes eu sabotei meu próprio esforço. Já me dei rasteiras que nem mesmo meus inimigos ousariam em seus piores pensamentos vingativos. Hoje quero crer que a pouca idade também tenha contribuído para isso. Não é via de regra, certamente que não, mas no meu caso, somente a imaturidade explica a recusa para uma bolsa para a melhor universidade do Estado, uma das melhores do país. Motivo? Fica lá na Gávea, muito longe do meu trabalho, gasto mais dinheiro de passagem, pego trânsito e, pior de tudo, fico menos tempo com o namorado que me bagunça, estando longe ou perto dele. E o tio de segundo grau que conseguiu a bolsa na PUC-Rio faleceu antes que eu tivesse tempo de me arrepender profundamente por ser tão irresponsável comigo mesma.
Dia dois de junho deste ano, o que parecia uma situação de perigo a minha independência financeira, se tornou o melhor acontecimento para a minha independência acadêmica. Sem emprego, mas com muito trabalho pela frente. E aconteceu justo no momento em que eu voltava de um dia de internação devido a uma crise de gastrite nervosa por conta do forte estresse negativo, um desgaste emocional que durante meses vinha me açoitando a alma. Então eu não tive estômago, literalmente, para ver a minha competência e dedicação nos doze anos na minha profissão serem monstruosamente subestimados pelo sorriso falso de alguém que só tinha uma experiência como balconista de papelaria. No meu ego de profissional a substituição forçada funcionou como um rebaixamento, uma perda de cargo e função. Talvez se fosse para uma pessoa com mais experiência, que agregasse algum valor ao trabalho e fizesse coisas que até então eu não tivesse conseguido realizar... Não, nem assim creio que não aceitaria. Não para uma pessoa que traía a confiança de todos os colegas ao levar para o chefe tudo o que pensava estar errado. É difícil aceitar a perda e perder para alguém mau caráter e incompetente é absolutamente cruel. Mas quando eu pensei que ficaria ruim, percebi que isso foi o que de melhor poderia ter acontecido: eu teria tempo e tranqüilidade para tocar o projeto mais importante desse ano. Foi um mal que me fez um enorme bem.

Analisei todas as possibilidades para não errar nos próximos passos. Perder o emprego não havia sido tão ruim, afinal de contas, profissional é profissional em qualquer lugar. E aí eu tive de pisar no ego: decidi dar o passo para trás e voltar ao estágio. Logo eu, que fiquei doente ao ver meu império construído com muito suor passar para as mãos de uma pseudo-rainha bastarda e burra, resolvi que a “perda” seria o caminho para a vitória.

(Continua...)

L.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Observatório


Sentada aqui observo seus olhos percorrem todo o espaço ocupado pelo meu corpo. São um metro de pedreiro, esses seus olhos: medem cada milímetro de mim, como se qualquer pequeno erro de cálculo nas medidas fosse capaz de fazer um grande estrago no trabalho todo. Mas, por fim, você se cansa ao descobrir que não, não há nada fora do lugar, é realmente um belíssimo trabalho, talhado em luz e feito em cor. Isso me delicia deveras! Sinto-me realmente uma estátua grega, nua, cabelos cascateando pelos seios, púbis coberto de pêlos, formas arredondadas e esguias, face impassível, fria, dura, sou estátua, afinal. E você é mais um admirador desta beleza que só existe nos olhos de quem entende a verdadeira arte de admirar o que não existe. Por isso deixo que me olhe, quem sabe até me deseje, pois é o seu olhar que mantém vivo o meu ego de pedra-sabão.

L.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Muito melhor agora

Pode-se mudar o futuro com uma reedição do passado.

Não tenho mais receio do que o amanhã me reserva, mas tenho medo de não ter tempo de aproveitar tudo o que sei que posso conseguir. Quero tantas coisas quanto queria antes — talvez queira até menos —, porém com mais requinte: agora sei como conseguir com a qualidade necessária para que sejam significativas nessa caminhada.

O trabalho não é mais sinônimo de emprego; trabalho, segundo Karl Marx, é atividade essencial ao ser humano, que transforma a natureza, o próprio homem e a sociedade em que vive. Quero o emprego, cargo, função e tarefas que me permitam realizar o trabalho transformador. Sou Analista de Gestão de Pessoas (em formação) e cheguei ao ponto em que essa é a minha atividade essencial: alinhar os interesses organizacionais e individuais, de modo que as relações de trabalho sejam, também e principalmente, humanas e humanizadoras. 

O amor não rima mais com sofrimento. Pelo menos não gratuitamente, daqueles que se sabe de longe que haverá e mesmo assim paga-se pra ver. Amor é libertador e não opressor. Se houver amarras, deixa de ser sentimento, relacionamento, e vira aprisionamento de almas. Sou mulher, adulta, vacinada e consciente das vantagens de ter passado por tantas experiências ruins, o que me possibilitou o aprendizado para construir novas experiências de sucesso.

Não me encaixo em nenhum tipo de padrão da “sociedade”: não tenho cabelo louro-liso, não tenho olhos azuis-piscina, não sou magra-modelo. Posso não ser a mulher mais bonita do mundo para uns, mas sou para mim. Tenho 1,67m o que me permite ser baixa quando quero e alta quando me convém. Meus longos cachos cor de caramelo emolduram olhos igualmente castanhos, que são capazes de recitar um poema com apenas um bater de cílios. Com 102 cm de quadril eu faço chover no deserto.


Sou o que sou e me aceito e amo assim.

Tenho ferramentas e sei como buscar a qualidade das realizações. Se não der pra tudo, não faz mal; o que efetivamente fizer, será o melhor que eu puder fazer no futuro para que o passado tenha valido a pena.



L.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Ineficiência


Deficiente auditivo é aquele que não pode ouvir.
Deficiente visual é aquele que não pode ver.

Aquele que não quer ver é deficiente de amor-próprio.
Aquele que não quer ouvir é deficiente de dignidade.






Estou cansada de ficar listando as incompetências alheias em forma de poesia, mostrar com oitenta dedos quais as possibilidades de caminho para a melhora. Muitas vezes deixo de cuidar de mim para segurar o outro no colo, embalar, dar de mamar e trocar fraldas. Todo mundo nasce burro, mas só continua quem quer. Só que gente idiota nasce perfeita; deveria seguir o caminho inverso ao longo da vida e regredir, ficando assim, esperta. Mas é complicado... Tem gente que não consegue e acaba morrendo idiota, do mesmo jeito que nasceu. Eu acho que dei sorte: nasci apenas burra. Ao longo desses trinta anos já provei a mim e a quem interessar possa, que só fui assim enquanto não alfabetizada. Depois que aprendi a ler, nunca mais perdi a rima. Depois que aprendi a escrever, nunca mais fiquei com sede. E depois que aprendi a fazer os dois ao mesmo tempo... nunca mais me soube santa.

Isso é quase insano: dar, dar, dar, dar e dar, sem esperar receber algo em troca. Mentira, espero, sim. Mas como dificilmente recebo, me acostumei a apenas levar [na cara], tomar [no cu], mas nunca a receber. Cuide de sua imagem, eu digo, com flores nos lábios, música na voz. E a resposta é: não preciso, todo mundo da minha área trabalha assim mesmo que nem mendigo, sujo, roupa velha, maltrapilho. Você está confundindo, porque na sua área as pessoas trabalham de terninho, mas na minha não. Somos imundos, mas produzimos.

Um belo dia, anos depois e após mais algumas insistências minhas ― sem sucesso, viva a mendicância produtiva! ― a pessoa me olha nos olhos e diz: “Sabe, estava pensando, acho que preciso cuidar da minha imagem... Imagem é tudo.

Fiquei olhando, observando e absorvendo aquelas palavras. Por que eu me importei? Por que eu tentei ajudar? Por que eu achei que pudesse, de alguma forma, transformar algo em alguém?

Esse é um dos meus grandes “defeitos”: ter fé nas pessoas, achar que têm o direito de errar, mas podem se recuperar e melhorar. Já devia ter aprendido: há quem não queira mudar. Há quem goste de viver no buraco, na lama, na pobreza ― material e de espírito, principalmente ―, nas trevas, na mentira, na sacanagem. Há quem seja muito feliz consigo mesmo, seus trapos e porcarias e assim passe muito bem, obrigada.

Da próxima vez que eu quiser insistir nessa mania chata de querer ajudar, não vou mais ter cuidado, sugerir, conversar amigavelmente, assim como alguém que vê um cabelo na camisa e se oferece pra tirar. Vou meter o pé na porta:

Pode tirando esse sorriso [defeituoso] da cara, você pode até ser eficiente, produtivo, inteligente e o escambau. Mas só quem te admira do jeito que você é, é sua mãe. Portanto, vai tratando de procurar um dentista, um dermatologista, um barbeiro e uma loja Scotsman.



Depois que aprendi a ser ruim, nunca mais quis ter razão.



L.



PS 1: Sim, eu escrevi cu. E daí? Se escrevesse ânus ficaria menos anal? Ah, palhaçada! Cu: quem não bota no de alguém, toma no próprio.
PS 2: Cansei de ser legal e boazinha.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Já vou


Pronto. Pé na estrada outra vez. Em todos os sentidos. Aprendi a esperar o tempo do outro - que nunca é igual ao meu - e me deixei parar para acompanhar quem eu queria que andasse ao meu lado. Ando só novamente. Em todos os sentidos. Mas não desisto, nunca desisti. Quando eu menos espero, alguém resolve me acompanhar outra vez. E isso é bom. Em todos os sentidos. Não sou só; quero estar só, pois só assim sou parte de tudo e de todos, num único sentido.



L.




* Texto originalmente publicado em 11/11/2010 no Google Buzz.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Aliados


Você não pode sentir o que eu sinto, muito menos pode ver o que eu vejo. Não pode realizar os meus sonhos, ou mudá-los para sua própria realidade; nem pode sonhar por mim. Mas olha só, aí está você querendo saber dos meus sentimentos, sonhos e realizações. Eu sei e você sabe também que minha vida é única e não tenciono transformá-la em várias para dar conta de todos que me solicitam ― você sabe e não me cobra. Você não pode me dar tudo o que eu desejo ou satisfazer todas as minhas vontades, embora ouça atentamente quando eu digo o que quero. Você entende, mais do que qualquer outra coisa que, quando me olha nos olhos está vendo a mim e não aquilo que gostaria de achar no ser humano perfeito; você sabe que não sou perfeita e me aceita. E com você eu me sinto uma imperfeita bem ajustada, pois é nesta condição que vejo as grandes diferenças que nos tornam iguais.

Agradeço não por não poder fazer nada em meu lugar, mas sim, por estar do meu lado enquanto eu mesma faço.

Desejo que Deus te guarde e as Luzes do Céu iluminem seus caminhos para que a sua caminhada seja enfeitada com os laços coloridos do amor, da paz e com os pingos de alegria das boas amizades.











Hoje minha escrita em oração é dedicada a algumas pessoas que neste dia me deram sua força de alavanca:

Jacira Leão
Fiel: “Até que ela me diga o contrário, ela continua sendo minha amiga.”

Cátia Diniz
Se não muda o mundo, mudamos nós. Pra sempre as detentoras...

Flavio Araújo
O meio-fio nos aguarda pra celebrar. -- Vamos negociar!

Simone Castro
Esquecer de ti? Você me esqueceu? Então...

Carlos David
Conhecimento compartilhado e multiplicado. Trabalho em dupla? Não. Em grupo!

Monika Braga
Primeira pessoa que entende meu TOC.



“Amizade é amor que nunca morre.”
Mario Quintana


L.

domingo, 7 de novembro de 2010

O último e o próximo passo



Esses dias dei para sentir saudade, e, como sempre, levantar uma porção de dúvidas sobre minhas próprias regras e definições, criadas para estabelecer um padrão de vida relativamente saudável no sentido psicológico da coisa.

Saudade e falta são coisas diferentes. Não quero que volte o que já passou ― ainda que tenham sido maravilhosos, tiveram o tempo exato para sê-lo ―, mas a saudade é o resultado do processo construtivo das lembranças. E negar o passado é negar a própria existência, o que, no meu caso, do alto dos meus trinta anos, é impossível diante da riqueza das experiências.

Nunca roubei, nem matei, nem me prostituí e nem me droguei, mas de resto, já fiz tudo. E ainda há muitas coisas que desejo, especialmente as imateriais. Positivamente nunca valorizei tais experiências, mas hoje entendo que sejam as mais importantes desta caminhada: são o que de fato poderei carregar comigo até o fim da estrada e ninguém conseguirá tirá-las de mim.

Ando com meu saco de lembranças, pois me são muito úteis. Para pensar no próximo passo convém lembrar se ele já não foi dado, e se foi, se deu certo. E hoje a saudade me ajuda a redefinir a estratégia da caminhada. Nunca é tarde quando se tem vontade de mudar.


Ansiedade boa nascendo.



L.

sábado, 6 de novembro de 2010

Caixa de tesouros



Há duas semanas recebi a minha caixa de tesouros de volta. Por falta de espaço em casa e por segurança, ficaram no mesmo quarto, sobre o mesmo armário ― espaços que um dia ocupei na casa materna. Revirando aqueles papéis, fotos, cartas, bilhetes, poemas e objetos, espanei a poeira da mente que guardava aquelas histórias. Dia 28 de agosto de 1998, dia 14 de julho de 2003, dia 13 de abril de 2003, dia 2 de maio de 2002. Foram dias de extremos: felicidade inominável e dor profunda. Aliás, as feridas contidas na caixa já estão cicatrizadas e justamente por isso, tudo o que havia de material a respeito delas foi para o lixo. Os papéis que ainda guardavam dias e noites de lágrimas, traições e desesperos, esses foram feitos em milhares de pedaços. As lembranças ficaram, claro, fazendo companhia às viagens, aos passeios de barco, aos abraços e reconciliações.

Nesta caixa eu costumava guardar tudo o que me era importante, bom ou ruim. Durante um tempo parei de fazer isso, talvez até pela idade também. Até os 16 anos eu ainda tinha diário, que virou agenda até os 25 anos e agora, surpresa!, tenho um blog. Os diários joguei fora, apesar de passar uma noite me contorcendo de rir com a escrita da adolescente que sofria de amor pelo pedreiro ou pelo cobrador do ônibus ou pelo motorista da Kombi. Também me apiedei dela em muitos momentos, pois eu sei o quanto foi difícil passar por essa fase do descobrimento do mundo e de si mesma tendo uma cruz gigante para carregar que não lhe pertencia, mas que lhe fora, de certa forma, imposta e que acabou sendo aceita. As agendas também joguei fora: as aventuras com os primeiros namorados dariam uma comédia. Aos 17 anos eu aprendi a lidar com namorado do tipo Esperto. Naquela época em que estava sendo alfabetizada no assunto, eu acordava de madrugada para chorar na janela pela sexta-feira em que era deliberadamente deixada em casa. Hoje sou Mestre ― prestes a concluir o Doutorado ―, por isso piquei todas aquelas páginas. Os primeiros anos da vida adulta foram de fato os piores, por isso guardei apenas uma página dos 18 anos, uma que, em papel e pensamento, jamais será esquecida. Aos 21 anos me tornei uma mulher linda, ainda desmiolada, mas muito bonita e feliz. Foi a época dos buquês, declarações de amor, poemas e finalmente a Era da Responsabilidade: aos 22 anos me tornei tia, madrinha e madrinha de novo e não tardei a entrar na faculdade. Um dia, ao atravessar a rua imprudentemente e quase ser atropelada, entendi que não poderia mais me por em risco: eu tinha uma vida da qual muitos sentiriam falta, especialmente certa pessoinha que havia acabado de entrar nela. Com todos os problemas que ainda existiam, eu consegui ser bem feliz nesse período.

Entre o blog e a caixa há um hiato, mas que tenho tentado recuperar. Talvez um tempo sem tesouros significantes. Hoje depositei na caixa alguns outros tesouros, inclusive os melhores momentos do blog, fotos, bilhetes, um barquinho de papel e uma folha de caderno escrito “Você é a melhor Dinda do mundo.” ― coisas que nenhum dinheiro no mundo poderia pagar.

Algumas coisas não podem entrar lá: a enormidade de sua importância não permite que sejam encerradas numa caixa. Para estas existe o coração.


L.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pergunta enlatada, resposta vazia



Costumo pensar que minha profissão é mais do que apenas algo que me dará o sustento dignamente ― e adoro ter certeza. Quando olho para trás e vejo a jovem que estava a meio passo de seguir o caminho mais curto, fico grata de não ter conseguido colocar um pé diante do outro. Não escolhi trabalhar com pessoas; o universo de Recursos Humanos me colocou na posição de aprendiz da vida a fim de que eu pudesse entender que todos desejam e merecem aquilo que eu também quero: compreensão.

Alguns profissionais, como característica da profissão, se irritam ao serem abordados com dúvidas pelas quais estudaram e habitualmente cobram para responder. Eu não. Sinto prazer em falar de RH no meio de uma pista de dança, por exemplo. Se me perguntam e me deixam falar a vontade, não encontro limite para dissertar sobre o que sei. Na verdade, o único limite é quando realmente não sei. E nem isso me segura por muito tempo, afinal, só fica no escuro quem não sabe riscar o fósforo e acender a vela.

Quanto mais aprendo, mais me torno uma pessoa melhor, mais evoluída. Não apenas qualificada para o trabalho, pois o que mais me atrai neste aprendizado é a possibilidade de conhecer o outro e, desta forma, me conhecer também. Faço o caminho inverso da maioria: é lidando com o ser humano, suas fraquezas e virtudes, que consigo enxergar, entender e trabalhar com as minhas.

Claro que tudo tem seu lado sombrio, e o meu nesta caminhada de aprendizado, é justamente quando alguém me pergunta algo esperando que eu responda o que a pessoa quer ouvir. Oras, se não quer minha opinião, por que pede? Isso me deixa altamente irritada. Quem é da área de Tecnologia que se amarra nisso: você tem as respostas na ponta da varinha mágica e todas elas são enlatadas, classificadas e etiquetadas, fechadas e prontas e acabadas, sendo possível a resolução de toda e qualquer questão de forma rápida e óbvia. Óbvia? O ser humano é óbvio por acaso? Se estivermos falando de trabalho realizado por máquinas, ok, troca-se a peça defeituosa, aperfeiçoa-se o sistema. Para tudo ou quase tudo há um up grade disponível. Mas até mesmo em trabalho de máquina há um ser humano que cria, monta, opera e conserta a máquina, então entendo, portanto, que todo trabalho só existe se houver uma mão humana antes, durante e/ou depois do uso.

O que eu quero dizer com isso é que não adianta me fazer perguntas enlatadas esperando que eu responda com um abridor. Se quer minha orientação, eu sou carne, osso e coração para dá-la dentro do que eu conheço de RH e vida. Mas se espera que eu diga “Que legal! Acho sua ideia ótima.”, então peça opinião de outra pessoa, de outra área. Eu funciono assim: ouço, analiso e respondo. E argumento. Menos que isso, só meu silêncio. Que também não me custa nada para dar.



L.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Uma linha

Obrigadaaaaaaaaaaaaaaaa!

Te amo, Pai. És o melhor Deus de todos os deuses do mundo! Uhul!

L.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Peraí


Pai,
Eu tenho muitos defeitos, sou cheia deles. Tu sabes bem disso. Sou chata, arrogante, estúpida, grossa e intolerante. Sou teimosa. Tenho dificuldade de esquecer mágoa, perdôo, mas não esqueço. O Senhor sabe disso, não sabe? Então sabe também que sou desastrada, em todos os sentidos: vivo com marcas roxas e cortes devido a estabanação em casa; meto os pés pelas mãos cada vez que o coração acha que está apaixonado. Viu? Meu coração é burro! Ele nunca soube a diferença entre um homem e uma pedra. Quantas e quantas vezes o Senhor me ouviu chorar por isso? Então, eu ainda não sei distingui-los. Veja, ainda sou da noite, gosto de sair, dançar até o dia clarear sem em importar com o amanhã. Sou irresponsável. Creia-me quando digo que meu egoísmo não conhece limite: não tenciono dividir meu pouco tempo livre com outras pessoas que não sejam minha manicure, minha depiladora e minha cabeleireira. E meu dinheiro? Tão pouco... Sou egoísta demais e não estou preparada pra dividir o que nem tenho. Não sei dar, ainda quero só receber. Sou mimada. Não gosto de beber água, o Senhor sabe disso. Conversamos há pouco sobre isso tudo. Sempre lhe disse que faltava apenas uma coisa, mas cheguei a conclusão de que faltam duas: ele e eu. Faltamos nós! Eu não sei e não gostaria de repartir meu peixe agora... Tu, que sabes do meu coração melhor até do que eu mesma, por favor, Te peço novamente: agora não.

L.

domingo, 19 de setembro de 2010

O som do meu silêncio


Sento-me aqui com um copo de mate frio para dar início a alguma coisa que não sei o que é e nem como. Rio de Janeiro, quarta-feira, 07 de julho de 2010. Sobre a mesa, a velha bagunça de sempre: a edição da revista Você S/A lida pela metade, creme hidratante para as mãos (grande aliado para quem passa muito tempo digitando) e do lado direito, dois bonitos e travessos sorrisos enfeitam a paisagem caótica.
Quero contar esta história, disso eu sei. Talvez seja a única coisa de que eu saiba agora, porque há tempos deixei de ser dona da razão nessa relação — nem mesmo da minha — pois perdi em alguma parte do caminho o fio que me prendia a ela.
Pensei em começar do início, seria o mais lógico, mas onde foi mesmo que começou? Cogitei o principiar pelo final e vir trançando meio e início, mas meu vasto conhecimento literário ainda não me permite abordar os fatos assim, me perderia. Então decidi: serei simplesmente eu. Eu, Lucille, garota doida, mulher em construção, filha, amiga, analista de RH. Eu. Eu que só quero contar uma história e nada mais. Eu que não espero que alguém tome meu partido, que não desejo nem piedade e nem aplausos. Eu, que só quero deixar no papel este pedaço de mim, pois já não aguento carregar tudo sozinha.



































Dizem que tudo que começa mal, acaba mal. E é verdade. Mas eu, do alto dos meus 1,67m de teimosa esperança, sempre achei que não, o ditado estava errado e sim, havia a possibilidade de Michel se transformar num príncipe encantado e encantável. Bom, primeiro se tornaria um príncipe e só por isso eu já me daria por satisfeita. Ele gostava mesmo era do brejão dele e coachava alto, feliz e contente por não ter de sair de sua zona de conforto. E eu, ah, eu... sempre querendo que ele se transformasse com meu beijo. Aliás, com meu beijo, meu abraço, meu pedido, meu esforço, minha abnegação.
Mesmo querendo, não fui o que se possa chamar de santa. Os primeiros erros foram meus, ou melhor, eu mostrei as primeiras dificuldades que ambos deveríamos ter aprendido a superar. Eu queria aliança no meu dedo, pressionei e ele cedeu. Por que não o deixei ter vontade de oficializar a relação? Porque era tão insegura quanto ele era despreocupado. E apesar de satisfazer a minha vontade, meu capricho, não foi um início de namoro leve e adequado. Outro tropeção e uma queda me fizeram ser pega no detector de mentiras. Por gostar muito dele — e por não saber o que sei hoje —, aumentei o intervalo entre ele e o último grande amor de dois para quatro anos, afinal, com muito mais tempo, ele não teria mais motivos para duvidar de mim. Grande engano. Mas que diferença fazia se eu tinha ficado com outro antes dele? Brigamos, nos reconciliamos, nos declaramos apaixonados após a viagem de Reveillon de 2007 que aconteceu no terceiro mês de namoro e tudo pareceu estar perfeito entre nós. E estava, até eu descobrir que, para me castigar pela mentira, ele mantinha um relacionamento virtual com Nana — lady até o último fio de cabelo, daquele tipo que puxa o elástico da calcinha, bate na virilha e grita “meu hômiiiiii”. Quando li aquilo tudo, com uma toalha enfiada no rosto, abafava os gritos e o choro alto que me sacudiam violentamente. Não tinha vontade de bater, nem brigar, só estava infinitamente triste, traída como mulher e amiga, já que ela se fez passar por minha amiga para ter acesso liberado até ele sem que eu desconfiasse de nada. E, de fato, ela estava certa.
Enquanto eu chorava, do outro lado da linha Mic me consolava, queria me fazer acreditar que Michel prestava, sim, que eu deveria conversar, podia ter havido um mal entendido. Que mal entendido o quê?! “Que vontade de chupar sua língua” é coisa de alguém que se expressou errado? Para de defender ele! E chorava ainda mais, por ser traída e por meu grande amigo não me entender.
Naquela mesma noite, encontrei-a no baile. E Michel já havia ligado para ela avisando que eu descobrira tudo, para o que ela já tinha a saída: termina e fica comigo “Faça acontecer, que eu faço valer a pena”. Carregarei essa frase na lembrança para sempre, estava gravada no celular dele. Apesar de tudo, lá estava eu, shortinho branco, camiseta e salto alto. Bela e cheia de mim. Ninguém desconfiava o que se passava por dentro daquele meu ser. Quando a vi, fui até ela em passadas curtas e diretas. Na mão direita uma garrafa de vidro. De cima do palco, Mic e Michel assistiam a cena do embate: o primeiro se preparando para pular e me impedir de quebrar a garrafa na cabeça de Nana e o segundo pronto para sair correndo dali. Mas eu nem havia me dado conta de que estava com uma possível arma nas mãos, estava apenas bebendo o líquido que havia nela. Em pé ao lado dela eu era a mulher mais bonita e gostosa do mundo, uma comparação quase desumana. Abaixei até a altura dos ouvidos dela e disse: Quer pegar? Fique a vontade. Michel é homem de pista mesmo, pego eu, você, a esposa dele e quem mais quiser. Mas faça em silêncio, porque ele é homem, passa como gostoso. Você sai como vagabunda. Quer ver só? No baile tem três caras que eu fico e ninguém sabe de ninguém, por isso são três, se eu alardeasse como você fez com Michel, não pegaria ninguém. Neste exato momento passou um amigo, negro, alto e bonito, amigo apenas, com quem nunca tive nada. Ele me cumprimentou com um abraço e um beijo no rosto. Virei-me de volta para ela, que estava de olhos arregalados pela qualidade do rapaz, e disse: Viu? Esse é um deles. Pensa no que eu te ensinei. E saí de perto, unhas encravadas nas palmas das mãos, ódio fervendo nas veias e uma vontade monumental de chorar. Engoli choro e bebida e fui dançar, certa de que tinha feito o melhor que poderia e muito menos do que esperavam de mim. Dancei, saí do baile com Michel, ficamos juntos, eu o perdoei, pois ele alegou que tudo não passava de uma vingancinha e que não teve e nem queria nada com ela, e depois dormi, olhos inchados de chorar. E essa foi a primeira mágoa.
Errar é absolutamente humano. E insistir no erro o que é?
De fevereiro a abril os dias voaram. Eu saía do trabalho, ia para faculdade e de lá para a casa dele. Quando não, direto do trabalho para a casa dele. Para deitar junto e acordar no meio da madrugada sozinha e descobrir que ele mantinha mais outros relacionamentos via MSN: Regina, Juliana, Aline... Na Páscoa, o mundo que já estava havia muito tempo sustentado por finas varetas, acabou por desmoronar. Eu e meus sacos de roupa voltamos para casa, depois de terminar pela enésima vez ao descobrir que, além de tudo, ainda havia a ex-dona dele no páreo. Passeios no shopping e encontros nas tardes, tudo debaixo do meu nariz. Neste período, nos dias em que ficava em casa, pegava de minha mãe os remédios para dormir e tomava escondida, porque se não fosse assim, virava as noites acordada. Então voltei para casa. Novamente ele me pediu para voltar e novamente era tudo que eu queria ouvir, mas claro, tudo pela internet, porque ele não sabia falar, só escrever. Saí da internet por dez minutos e quando voltei para dizer que iria me arrumar para voltar para a casa dele, ele havia desconectado. Liguei para os três celulares e mais o telefone de casa: desligados todos. Triste, voltei para a internet, uma vontade de dormir, de sumir mesmo, só para não sentir mais aquilo. Ele havia ido ao cinema com a Joyce. Sim! Ainda tinha mais essa! Pois bem, me pus a pensar em como retirar outro comprimido rosa da caixa sem levantar suspeita da minha mãe, só isso faria passar aquele sábado horrível. Enquanto pensava, a janelinha do MSN pulou. Rodrigo, a única fonte de sorrisos naquele dia. Contei sobre o remédio, ele ficou preocupado. Como namorado ele havia falhado também, mas como amigo sempre foi imbatível. Convidou-me para dar uma volta, conversar, estava me vendo mal e queria ajudar. Quando eu já estava pronta para sair de casa, telefone tocou. Com uma muito mal fingida voz de sono, Michel se apressou em dizer que estava dormindo. Ok, amanhã nos falamos. E desta vez sem o Bromazepan tive uma noite tranquila, falei muito, ouvi, mais falei do que ouvi, ri muito e passei outra noite acordada, mas dessa vez foi bom ver o Sol nascer. Na semana seguinte, aniversário de Michel. Constatada a traição no cinema, liguei para Joyce que não só confirmou tudo como sentenciou: “Se ele disser que é mentira, pode me ligar que eu desminto na cara dele”. Nós duas sabíamos com quem estávamos lidando: ele realmente mentiu. E não satisfeito em mentir apenas, despiu-se de toda a vergonha na cara que ainda lhe restava como homem. Não saiu com ela, jura? Jura pelo sangue da sua filha? Ele jurou. Que tipo de respeito eu poderia ter por uma pessoa que expõe a filha dessa maneira suja e ridícula? Já respondo: o mesmo que eu tinha por mim, pois se tivesse algum, jamais teria continuado essa maluquice.
Os outros meses vieram com mais descobertas, sendo nenhuma delas positiva. O que há de positivo em parar no hospital, depois de receber uma gravata e desmaiar no chão da sala? O que há de positivo em ser sufocada com o travesseiro e gritar e se debater desesperadamente por socorro mesmo sabendo que na favela ninguém se envolve em “briga de marido e mulher”? Chamar a própria mãe em socorro, que certamente dormia aquela hora da madrugada do outro lado da cidade. Existe positividade em ser posta para fora de casa no meio da noite, como se fosse uma puta qualquer? E isso tudo não é analogia: eu vivi na pele e no coração.
Como não havia o que contrabalançar, ficava apenas um gosto amargo na boca e o cinza nos olhos. Nada de bom, apenas suportável porque assim eu permitia que fosse.
No ano seguinte, a grande preparação para a entrada numa nova religião: o candomblé. Nunca tive nada contra, a minha fé é bem resolvida, graças a Deus. E lá fui eu com Michel, a sogra Rosangela e o sogro Carlinhos enfrentar tardes em busca dos aparatos para o processo. Como já fazia em casa também, paguei por aquilo que estava ao meu alcance: sapato, lençol, etc. Se era para o bem dele, seria o meu também. E foi. Enquanto ele estava recolhido no barracão, descobri mais uma traição com a Joyce. Desta vez não havia como mentir: a foto estava lá, sorridente e desafiadora. O que eu poderia fazer? Invadir o barracão chamando-o de canalha? Quem acreditaria na maluca barraqueira da Lucille? Ciumenta, isso sim! Engoli em seco e deixei para o momento certo. Ele saiu, eu estava lá posando de hum-hum “primeira-dama”, fiz a felicidade dele mais uma vez em detrimento da minha. Dormimos três noites na mesma cama sem poder nos tocar devido ao período de resguardo dele. E na quarta noite que deveria ser de explosão dos fogos... 1h da manhã, briga, discussão, gritos. Não sei como e nem porque, às 2h tudo se acalmou novamente. Houve a explosão, mas de uma bomba de fabricação caseira, criação minha para me auto-sabotar. Desisti de mim outra vez.
Como já disse, nunca fui santa. Mas fui criada em cativeiro, e ele sabia bem que espécie de monstro estava gerando. Ou não. Novamente a pressão para noivar. Ele queria apenas juntar as coisas, viver assim-assim, tipo namorado na mesma casa e dane-se o resto. Eu queria oficializar, ele não. Já tinha vivido 8 anos com Bia a ex-dona e quando se cansou dela, mandou-a pastar com uma filha de baixo do braço dizendo: “Quer quanto para sair da minha casa?” Pelo menos nessa parte eu sabia com quem estava lidando e poderia deixá-lo fazer o que fosse comigo — como já deixava — mas com um filho meu, jamais. E estas visões de um futuro pior do que já estava o presente, me faziam buscar em outros o amigo que nunca tive nele. Não um e nem dois. Vários. Pessoas que me animavam, me faziam sorrir quando a vontade era de cair em sono profundo e eterno. Numa dessas me rendi. Quando vi, estava subindo a ladeira em Piedade, tirando a aliança do dedo e enfiando cuidadosamente na bolsinha de dinheiro. Na volta, quase pega em flagrante, descendo a ladeira e recolocando a aliança, vi-o chorar a mesma dor que eu chorara tantas vezes antes, por ser traído e não ter certeza. E isso me fez bem. Não, não foi trair. Foi vê-lo chorar. Então aquele poço de frieza e falsidade era capaz de sentir dor?
No meio de 2008 iniciamos a psicoterapia individual. Meus motivos para buscar ajuda iam além dos problemas com namorado. Muitíssimo além, mas foi o que ajudou a suportar tudo o que veio depois.
Terminamos definitivamente o noivado que havia durado apenas um mês. Terminamos o namoro que nunca terminava. E eu o amava tanto que nem mesmo com o cara certo, perfeito e ideal dizendo que estava se apaixonando por mim consegui me desvencilhar dele. Decidi ficar onde já havia o velho e conhecido sofrimento. Deixei o Sr. Perfeito sem dizer o motivo, apenas porque ainda acreditava que pudesse dar certo com Michel.
Sem dinheiro e sem trabalho, Michel era parecido com gente. Mas com as migalhas do trabalho informal, se auto-proclamava dono do mundo.
Eu saía da faculdade 22:30, pegava o metrô rumo a Ipanema, fazia integração no último ônibus da noite para Barra da Tijuca e ia apanhá-lo no trabalho. Ele estava sem dinheiro até para voltar para casa, mas era também a única forma que eu encontrava de estar com ele. Saindo de lá 00:00h, chegávamos a Zona Norte 01:00h e eu ainda pagava o lanchão no Bobs (claro, porque ele nunca comia um hambúrguer simples, era sempre o maior e mais caro) para que não dormíssemos de barriga vazia, especialmente ele que muitas vezes sequer almoçava. Passaram-se dias assim, semanas até. Novamente peguei-o de papo no Google Talk numa dessas noites em que o aguardava “terminar” um trabalho por lá. Em outro dia ele se despedia da mocinha ao telefone enquanto andava até mim. Nessa altura do jogo já não tinha mais força de brigar. Quem era? Minha mãe. E por isso ficava.
Traições bombando, inclusive com a ex-atual-ex Bia. E assim chegamos até o momento em que ele conhece uma mulher no barracão do candomblé. Já conhecia, mas eu só senti o peso desse conhecimento nessa época.
Era mês de novembro, completaríamos dois anos se ainda estivéssemos juntos. Uma idiotice sem tamanho essa minha, mas eu ainda sonhava que ele pudesse mudar, voltar a me ver como mulher e dissesse que me amava e que nos casaríamos e ficaríamos juntos pra sempre. Mais uma vez nos separamos “definitivamente” e fomos nesta condição ao Viaduto. Porém, eu sozinha e ele com a nova namorada-não-assumida-então-ainda-era-peguete. Todos viram, as amigas comentaram, mas eu tentei com toda força não acreditar. Ele devia estar fazendo aquilo pra me provocar ciúme, era isso. Eu estava errada de novo, como em todos os julgamentos que fazia a respeito do Michel. No dia seguinte, pessoas legais convidaram para ir ao cinema, sair, etc. Neguei todos. Fiquei em casa curtindo uma fossa, que no dia seguinte se tornou sem fundo. Eu não sabia o que estava para vir, mas foi sem dúvida um plano bem arquitetado. Michel me mandou um e-mail dizendo que estava com saudade, que havia me visto no baile, eu estava linda e queria ter ido falar comigo. Claro que sim. Ah, e não, ele não estava namorando. Fiquei esperando que ele dissesse nas outras linhas: mas quero te ver hoje, me perdoa, volta. E ele não disse. A noite, já em casa, continuei esperando e ele continuou me cortejando sem chegar a esse ponto. Fez-me sentir querida, amada e desejada, sem no entanto dizer que me queria, que me amava e me desejava. Pelo Google Talk conversamos, eu chorei muito, falei que estava profundamente triste e ele então passou a me tratar como amiga, muito paciente e ouvinte atento. Não era um dia comum, era dia 24 de novembro, segunda-feira, o que deveria ter sido nosso aniversário de namoro. Madrugada começou e as lágrimas iam aumentando até que ele saiu da internet e foi dormir e eu fiquei ali digitando, para tempos depois descobrir que estava sozinha. Outra noite em claro. Quase 9h do dia seguinte fui me deitar. Meio-dia estava na internet atrás dele outra vez. “Minha linda, vá descansar mais...” Assim ele me disse, a mim, que tinha faltado ao trabalho alegando estar passando mal. E estava, mas de amor. Como ele sugerira e eu não tinha nenhuma noção de certo e errado para protestar, voltei para a cama, de onde levantei quase 16h. Desta vez estava mesmo passando mal e queria ir ao médico. Mentira: queria que ele se penalizasse da minha dor e fosse cuidar de mim. Mas ele não foi. Disse-me assim “Toma um banho, come alguma coisa. Passa um creme no corpo, fica bem bonita.” Coração disparou: ele vai vir! “Vou entrar em reunião agora e volto já pra gente conversar”. Fiz tudo que ele mandou. Estava em jejum absoluto até as 18h daquele dia. As horas passaram e às 21h como ele não tivesse reaparecido, resolvi ligar. Preferi me certificar de não ser injusta: ele poderia ter ficado sem luz, algo assim. Mas ele não atendeu. Liguei e todos os números chamaram incansáveis até as 23h, quando finalmente desisti de lutar. No dia seguinte fui para o trabalho toda de preto. Entrei no ônibus chorando. Cheguei ao trabalho, deixei a bolsa sobre a mesa e corri para o banheiro para afogar a dor em todas as lágrimas que apareciam. Continuei ligando neste dia e no seguinte. Comentei com Mic sobre o desaparecimento e disse ou ele morreu ou está com outra e ele me perguntou o que eu preferia destas duas opções. Falei que sabê-lo morto não seria má idéia. Ele me respondeu: “Para de palhaçada! Eu sei que você não quer mal a ele, só está magoada. Mesmo sendo ruim, eu sei que você quer ele vivo, mesmo que não seja com você.” Ele me conhecia muito bem, cada pedacinho do meu coração e estava mais uma vez certo. Em dado momento o celular de Michel ficou fora de área ou desligado definitivamente. Na sexta-feira, assaltada pelo pânico ao ver a matéria no jornal sobre a invasão a favela do Jacarezinho onde ele morava, busquei com os demais amigos notícias dele. Não se tratava mais de namorado, mas sim de uma pessoa que poderia estar morta dentro de casa. Era a sexta-feira da prova final de Responsabilidade Social e no mesmo dia fui demitida. Sorte demais para um dia só. Liguei então para a alcoviteira da ex-sogra, que me tratou mal no telefone apesar de eu nunca tê-la ofendido e apesar dela merecer. Tudo contribuindo para a piora do meu estado. Hora da prova se aproximando, crédito acabou e eu não consegui confirmar com ela se tinha notícia do Michel. Desci o prédio da faculdade, comprei outro cartão e liguei novamente. “Que-qui-éééééé?!” Engoli bem seco. Desculpa, só queria saber se a senhora falou com Michel esses dias. “Falei hoje” Geleiras derreteram em mim: então ele estava vivo, apenas não queria falar comigo. Aliviada e derrotada, fui para a prova, cabeça em turbilhão, coração chorando baixinho satisfeito por ele estar bem, exatamente como eu preferia que fosse.
Nota máxima na prova e um emprego novo três dias depois, segui minha vida.
Alguns dias depois ele reapareceu, contei a ele em meio as lágrimas o que eu havia sentido naqueles dias em que ele havia supostamente desaparecido. Com a dignidade inabalável ele me confessou que fizera de propósito e premeditadamente, queria me machucar e, como podia ver, havia conseguido com louvor. Tudo fora planejado, desde o e-mail até o sumiço. Por que, meu Deus? “Por que você saiu com outro cara” Mas eu estava sozinha, não podia tentar refazer minha vida? “Não interessa, eu gostava de você e você me magoou com isso.”
Levei um tempo para me acostumar com isso tudo, com esse plano de vingança tão cruel do qual eu tinha sido vítima. Paramos um dia na entrada do prédio do meu trabalho, ele me disse que queria voltar. Disse assim apenas, não pediu e nem fez força, foi quase um comentário. E eu perguntei por que ele não tentava me reconquistar, e não penas ter o status de namorado. Ele me olhou bem sério, balançou a cabeça afirmativamente e disse “Ok, vou pensar no que você está falando” e daí nunca mais nos vimos. Outro sumiço e ele foi viver vida nova. Mas não chorei (muito) desta vez e nem o procurei. Deixei que as chuvas de dezembro lavassem minha alma suja de sangue.
Janeiro quente de 2009 me trouxe Pedro. Rio só de lembrar da noite e da figura. “Você tem filho?” ele me perguntou, como se isso fosse um defeito no outro — para quem quer namoro é, eu que o diga. “Quero te ver de novo, mas como minha namorada”, ele disse enquanto nos despedíamos. Na semana seguinte fez o pedido direitinho, no bar Carlitos, Lapa. Inacreditável a força de vida que ele tinha. Com viagem de Carnaval programada de antes de nos conhecermos, tive de negar o pedido dele de cancelar e ficar por aqui com ele. Mas o retorno foi surpreendente: entre beijos e carinhos no sofá, longe dos olhos de Dona Vilma, ele disse que queria que eu fosse mãe do filho dele, esposa dele. Depois de tanto apanhar, aprendi a ignorar essas palavras. Assistimos pela milésima vez Tropa de Elite e sem que eu sugerisse ou pedisse, ele me trouxe até em casa, do jeitinho que uma moça deve ir: acompanhada, abraçada, de táxi e feliz.
Feliz?
Rá! Feliz... Eu, feliz com amor, carinho, atenção, chamego e namorado com atitude? Pedro era ligado em 220 e eu estava ainda em 85, quase desligando. “Amor, vem pra cá, dorme aqui em casa e vai pro trabalho daqui amanhã”, ele sugeria. Isso quando eu pisava em casa, cansada de um dia de jornada dupla em trabalho e faculdade. Quando não, era “Minha preta, vou te buscar na faculdade, você dorme lá em casa.” E eu nunca ia, porque havia passado os últimos anos assim e não queria mais repetir, não podia mais. Mas penso que lá em Olaria eu teria sido muito feliz se não tivesse sido tão burra outra vez.
Não, burra não. Michel ainda estava enraizado em mim, da pior forma: a mágoa que nunca me deixava ver além do que ele podia me mostrar.
Terminei com Pedro e na mesma noite estava nos braços do Michel. Terminei com um e liguei para o outro para saber da roupa que tinha que me devolver. “Tá triste? Quer conversar?” E eu caí como um pato, abatida com a minha própria arma. Ato contínuo, voltamos. Eita novela ruim de acabar, sô! E como não poderia deixar de ser, ele me perguntou se eu tinha ficado com alguém. Não menti. “E foi pra cama com ele?” [Não fui apenas pra cama, Pedro nasceu pra isso: sabe como dar prazer a uma mulher. Fizemos amor uma noite inteira, sem cansaço e sem fingimento, e ainda dormimos de conchinha, isso só na primeira vez.] Pensei mais, porém só disse o necessário naquele momento: sim. “Não acredito que você fez issooooooooo!!! A mulher estava esfregando na minha cara e eu não peguei por sua causaaaaaaaaaaa!!!” Já me sentindo mega culpada, quis saber mais sobre o que o santo teve que enfrentar por mim. Esfregou como? “Ela me chamou pra dormir com ela e eu não fui, ela queria me dar e eu não comiiiiiiiiiiiiiiiii!” Falou assim, com a boca cheia de letras e a mente cheia de razão. Quando ele saiu da minha casa naquela manhã, foi-se magoado e me deixou constrangida, quase me sentindo suja, adúltera.
Quase um mês se passou até que eu descobrisse tudo: a mulher que esfregou e ele não comeu era a macumbeira que eu havia visto com ele no baile, que se chamava Viviane [nome de guerra Lenny], com quem ele engatou um namoro sério, mesmo sendo proibido o relacionamento no barracão, namoro de levar em casa e apresentar a família e a quem também engravidou, morou junto e viveu dias super felizes com os filhos dele e dela, fingindo que a amava enquanto mandava várias mensagens de texto para meu celular dizendo que me amava. Aliás, ele só parou de mandar quando eu desliguei a linha do telefone, ou melhor, eu que parei de receber pois estava com o Pedro. E ele só se deu por vencido quando ela, depois de abortar, terminou o namoro com ele para voltar com o outro trouxa que nem eu, Renan.
Quando revi Michel depois de tanto tempo sabia que alguma coisa tinha mudado, mas não sabia o que. Juntando todas essas descobertas e o tempo que foi passando, entendi o que era: o amor havia finalmente acabado.
Mas mesmo com essa fantástica notícia saída de minhas profundezas, ainda não conseguia me afastar dele. O vai-e-volta continuou ao longo do restante de 2009. Numa dessas conheci Jeff, preto com cara, atitude e pegada de preto. Com alma de artista, soube ver em mim detalhes que eu não conhecia; com uma sinceridade fora do comum, dizia coisas boas de se ouvir: “eu te admiro porque você é cheia de atitude e é mulé pá caraaalho!” rsrs Um dia me levou ao baile e me fez dançar sozinha, com ele e para ele. Sendo dançarino nato, me pegou pela mão e rodopiou feito bailarina de caixinha de música. Porém nada disso foi capaz de aplacar o sentimento de insuficiência que sempre me acometia quando estava sendo bem tratada por outra pessoa que não fosse o Michel — que me maltratava. Então eu terminei com ele também e voltei para quem eu sabia que me faria o mal que eu tanto gostava e talvez até precisasse.
Numa manhã de sábado em que eu teria terapia e depois realizaria uma tomografia, nós brigamos. Com alguns chutes enfurecidos ele quebrou os vidros da minha porta e com alguns socos, soltou meu braço do dele, que o segurava pedindo para se acalmar. Cheguei apenas até a clínica para fazer a tomografia, um exame assustador (o da rave), com fome, com o braço direito inchado e arroxeado. Quando saí do grande tubo, confusa, com medo e triste demais, sentei-me para me trocar na saleta fria e chorei um rio quente e manso, deixei a dor escorrer pelo peito externamente, já que internamente ela ainda estava sólida. Claro que não contei a ninguém. Não era a primeira vez que ele me machucava, então pra que contar se poderia também não ser a última? De todas as nossas brigas madrugada a dentro, como ele fazia com Bia, pegava o telefone e ameaçava ligar para minha mãe. E sabendo que isso me atormentava mais que tudo, era aí que a coisa piorava, porque eu passava de subjugada a assassina. E por mais que ele falasse, fizesse e tentasse, eu conseguia manter relativo desprezo e só saía de mim quando ele tentava envolver também minha mãe.
Uma manhã, depois de sair da minha casa me ameaçando de todas as formas, de me seguir até a porta do trabalho e de, como sempre fazia, me ameaçar de mostrar fotos minhas nuas para todo o mundo, tomei uma decisão. Logo no início de namoro, ele que é hacker dos piores, do tipo que invade sistemas, computadores e desbloqueia cartão de crédito roubado — depois as pessoas têm preconceito com quem mora na favela e não é a toa —, ele invadiu meu computador e pegou minhas fotos da época em que namorava Rodrigo. O que eu fizera de errado naquelas fotos? Estava com o meu namorado, amando e sendo amada, fazendo uma das coisas que a gente melhor sabia: amor. Michel se sentiu traído e durante todos esses anos ameaçava mostrar as tais fotos para o baile, para meus amigos e família para provar a todos que eu não era santa. E eu cheguei até a ter medo e vergonha, mas depois, cansada da mesma ladainha, falei bem grande: Foda-se! Quer mostrar? Nunca disse que eu era santa e se fosse nunca teria passado aquela noite de amor linda com o homem que era meu, não era amante nem peguete: era meu! Quer mostrar? No máximo eu saio como vagabunda e você como corno, pois todos sabem que eu sou sua namorada hoje. Fama de vagabunda passa rápido, mas ninguém esquece um corno, ainda mais auto-declarado e com orgulho. Quer mostrar? Então mostra e me deixa em paz! E naquele dia, tomada por uma vontade muito maior do que apenas fazê-lo parar, mas também de reagir, fui a Delegacia de Mulheres e o denunciei por quase tudo, pois para a mágoa ainda não havia previsão na legislação criminal.
Uma cirurgia para retirada de um mioma do útero. Eu ainda não sabia, mas isso startou todo o processo de desapego. Primeiro, até a véspera da internação Michel ainda não sabia se iria me acompanhar e na verdade não teria importância, afinal, a melhor de todas as mães estaria comigo. Mas eu queria a presença dele, sim. E por fim, ele acabou indo e acabou ficando. Também não sabia ainda, mas ao longo desse mesmo ano, ele mantinha outro relacionamento com Juliana, a mulher ideal (saquinho de osso que não sabe escrever o português correto — rsrs maldade!). Durante minha internação, cirurgia e pós-operatório nada mudou entre eles — e nem entre nós dois: tudo a mais perfeita merda!
Quando retornei do centro cirúrgico tinha a missão de superar a dor monstruosa custasse o que custasse a fim de poder ter alta antes do Natal. Era 22 de dezembro. Como o intestino não voltou a funcionar como o esperado, não fui liberada no dia seguinte. A primeira noite dormi com ele. Quero dizer, ele dormiu fartamente no sofá-cama de acompanhante e eu, já sentindo as pernas depois de passado o efeito da anestesia, mas sem poder falar, chamava-o para me ajudar a ir ao banheiro mas a Rainha de Sabá dormia seu sono de beleza. Pensei em minha mãe, minha mamãe Antônia e todas as mulheres fortes que conhecia e levantei bem devagar e fui só. O efeito da anestesia nunca passa totalmente do organismo e a ida foi difícil, com tontura e muita dor, e a volta, pior ainda. Só deu tempo de apertar o passo e deitar quase de qualquer jeito: o mundo dava voltas brutais. E Michel dormia. Somente no raiar do dia seguinte e já com a sentença de que ainda não estava de alta até começar a soltar pum — coisa mais humilhante, condicionar seu Natal em família a um peido — com o retorno triunfal da minha mãe, que amarrou o lençol pelo meu pescoço, me deu o braço e lá fomos nós corredor a fora, cada passo uma vitória dolorida, cada pum uma dor absurda, mas que carimbava meu passaporte para casa. Novamente ele dormiu comigo naquele quarto de hospital e nesta noite, 23 de dezembro de 2009, eu comecei a pensar no tamanho do sacrifício que estava fazendo para ter um filho: uma operação altamente invasiva, quase 400,00 em remédios, dor lancinante, uma eterna cicatriz e um e inútil do lado com quem sequer podia dividir isso. E para quê? Para que ele dissesse ao meu filho “Se a mamãe perguntar, você mente.”, como faz com a filha que já tem? Eu sei exatamente o que sofri com um pai que nada tinha a me dar de bom, apesar de hoje já entender que ele não poderia ter me dado o que também não tinha recebido. Então fiquei acordada naquela madrugada até onde me permitiu a medicação, vendo o seriado Raízes, pensando em Kunta Kinte, meu grande herói africano do Gâmbia e me permitindo apontar para meu próprio nariz e admitir que estava prestes a cometer o grande erro da minha vida.
Consegui passar o Natal em casa, essa passou por pouco. E Michel foi passar o Natal com Juliana sob a desculpa de que “precisava” ficar com a mãe. Eu levava dez minutos me arrastando do quarto pro banheiro e ele me deixou para ficar com ela. Mas não fiquei triste, estava com os verdadeiros meus: minha família materna. Enquanto eu me recuperava já em minha casa, eles trocavam altas mensagens apaixonadas via celular. A mulher elétrica! rsrs Nada disso eu sabia ainda, mas acontecia enquanto eu curava o útero pensando em parir um filho dele. Filho dele, do Michel... Valei-me, meu Pai!
Quando o novo ano chegou, trouxe consigo mudanças radicais. Expulso de casa pelo padrasto — quem aguenta? —, por sugestão minha a fim de não vê-lo viver de verdade como o mendigo que desconfio que ele gostaria de se fazer, ele passou a morar em minha casa. Silenciosamente e no meio da noite, comecei a me arrepender de minha brilhante ideia no momento em que vi minha casa entulhada de coisas dele, tão feias quanto desnecessárias. Minha casinha, meu buraquinho... Ficou escuro. E esse foi o princípio do fim.
O romance juvenil dele com Juliana provavelmente ficou um tanto abalado, já que ela frequentava o barracão e a casa dele como a primeira-dama da situação e agora não poderia mais vê-lo no aconchego de casa. Outro engano. Provavelmente Juliana conheceu minha casa, sim. Mas disso eu não quero mais ter certeza.
Passei a trabalhar para sustentar a mim e a Rainha de Sabá que vivia na minha casa sem ter a mínima vontade de lavar sequer o garfo com o qual comia. Eu fazia, eu comprava e eu arrumava. Combinamos de dividir as tarefas e o banheiro ficou para ele, já que era o maior responsável por sujá-lo, e fazer a comida era comigo. Dividir tarefas não significa que mais ninguém possa fazê-las na ausência do responsável, certo? Errado. Quando raramente eu não deixava algo pronto para o almoço, ele simplesmente ficava sem comer até a hora da janta. Preguiça fenomenal para tudo: levantava da cama quando eu já estava no meio do expediente no trabalho. E o dia corria em frente ao computador. “Lucille, eu estou trabalhandoooooooooo!!!”, dizia ele daquela forma que gostava de bradar para me fazer parecer uma bruxa insensível. Dias depois, o “trabalho” se revelava apenas um estudo, um teste para não perder a prática. Eu já não reclamava mais de nada. Nada mesmo. Não havia mais beijo, nem carinho, nem nada. E sem fazer força: apenas não tinha. E eu não sentia falta.
Em abril, quando finalmente as dores da cirurgia passaram de vez, dei uma boa olhada no espelho e vi uma mulher bonita escondida sob as roupas de trabalho. Disse a ela: Mostre-se mais, seja mais você e não uma senhora casada há 40 anos e conformada com a vida que leva. Não se conforme ainda! E mais que imediatamente voltei a usar batom, calças e calcinhas bonitas. Não era porque eu não sairia com alguém para namorar que precisava estar feia. Fiz a linda quase todos os dias, o que irritou Michel profundamente, claro. Mas qual o que, ele nem se deu a trabalho algum, afinal, ele tinha a Juliana e seu corpinho magro, para que iria se preocupar com minha bunda de 1,05m modelada na justa calça clara? Ah, besteira!
No entanto, havia quem gostasse e muito daquela visão. Eu sabia que havia. Um dia, antes de tomar banho para trabalhar, descobri finalmente que o tal “namoro” do cara que dormia na minha cama com a magrela ia muitíssimo bem: “Quero que saiba que estou pensando em você” ele mandou na mensagem de texto para ela. Escândalo? Briga? Eu? Banho, perfume, trabalho, faculdade e casa. Simples. “Vamos conversar?” Não. Afinal de contas, falar mais o quê? Deixei que alguns dias passassem e quando estava certa de agir por vontade e não por vingancinha barata, voltei a subir a ladeira de Piedade. Uma amizade que não se encontra em qualquer lugar, Mau, o homem alto que me fazia sentir apenas uma menina, tinha o poder de me fazer esquecer o restante do mundo quando me punha nas pontas dos pés para abraçá-lo. E como eu imaginava, ele gostou muito de ter visto a nova formatação na calça clara. No meio da Suburbana, envolvida naquele abraço carinhoso, cuidadoso e espaçoso organizei as ideias de modo que resultassem numa decisão importante.
Não quero mais ficar com você, não o amo mais. Mas não se preocupe, pode ficar aqui nessa casa, eu vou embora. Pacientemente disse tudo a Michel temendo pelo novo acesso de terrorismo. Não aguentaria outro como aquele. Aquele... Este:
Era noite de sexta da semana anterior e após uma discussão ao telefone sobre onde e com quem eu estava — ele achando que eu estava com outro homem e eu no ônibus a caminho de casa — decidi que era o momento de terminar. Dito isso, Michel virou em direção a cozinha e apanhou a faca, a mesma que me ajudara a comprar ano passado para descascar batatas e que naquele momento estava espetada contra minha barriga. Fique calma, eu pensei, você está lidando com uma pessoa doente, desequilibrada. Com todo cuidado convenci-o a largar a faca, não sem antes prometer que continuaria com ele. E só por isso eu já merecia o Oscar. Durante a semana a coisa tomou forma melhor e então eu decidi sair, afinal, constatei que colocar a faca na minha barriga não era devido ao medo de ficar sem mim. Ele tinha medo porque não tinha para onde ir, em menos de três meses era expulso da segunda casa e isso o encheu de pavor. Quando o padrasto o colocou para fora de casa, ele me ligou aos prantos berrando que iria matá-lo, que iria arrumar um jeito de acabar com a vida do padrasto. Pobre ancião que não gostava de ver o enteado desocupado em casa, levando mulher e comendo e bebendo às custas da parca aposentadoria dele e as costuras e faxinas da mãe. E a minha tática de sair de casa funcionou. Ele me deixou em paz. Eu saí com as amigas, dormi na casa de uma delas, cheguei a hora que bem entendi e ele não me questionou. A essa altura eu já não fazia mais comida, muito menos comprava e ele ficou luxuosamente instalado em seu novo chiqueiro, tal e qual era a casa em que morava quando o conheci.
Então lembrando disso, na semana seguinte mudei o foco. Eu não iria sair merda nenhuma! Como assim? Bebi ou usei droga pra pensar uma coisa dessas? Falei a ele que ele deveria sair de minha casa, e claro que ele concordou e no dia seguinte, segunda-feira, 5 de abril, lá estava eu, subjugada novamente sob a mira da faca. Desta vez com requinte de crueldade: ele enrolou a toalhinha de rosto no cabo para não deixar impressão digital e como se não bastasse a ameaça de morte, ainda me dizia a todo momento: “Vou te matar que nem a gente mata bicho no barracão: te furar e depois tirar tuas tripas. E você não vai gritar, nem vai ver nada. Imagina tua mãe chegando aqui e te vendo assim, toda aberta e ensanguentada? Já imaginou o que ela vai sentir? Mas a filha dela não pensou nisso antes de me sacanear.” Eu vou morrer e depois serei enterrada. Você vai ficar aqui pra pagar. “E você acha que eu vou ficar aqui pra ser pego? Vou fugir, ninguém vai me achar.” Durante um dia inteiro, enquanto a chuva carregava casas e vidas lá fora, dentro de casa eu era vítima do meu próprio monstro. A faca já não ficava mais restrita a minha barriga: Michel a encostava nas minhas costas e pescoço e, como um extremista religioso, fechava os olhos, cerrava os punhos e os dentes, pedia perdão aos demônios que cultuava, a mãe e a filha e dizia “Agora eu vou te matar!” No meio da tarde o telefone tocou, era minha mãe. “Se atender eu te mato. Não, atende sim. Atende que vai ser a última vez que sua mãe vai falar com você”. Eu estava sentada em frente ao computador, Media Player ligado tocando todas as músicas armazenadas na máquina. Como que em resposta as minhas preces silenciosas, começou a tocar Procuro Abrigo, uma das mais bonitas canções da missa. Conheci essa música na viagem ao Ceará, terra natal de minha família materna. Enquanto a ouvia, pensava Vai me matar? Então que mate. Cristo não teve medo, então eu também seguro a mão do Meu Pai e que seja feita a vontade Dele. Aumentei o volume e parti para a cozinha. Bem segura de mim, pus-me a lavar a louça, ignorando o terrorismo psicológico que ele fazia comigo. “Seu pai não vai te salvar”, mas isso não pôde ser ignorado. Então mata logo! E me deitei na cama, de lado e de costas para ele, esperando a faca rasgar minha carne de alto a baixo, golpes certeiros furando meu corpo, deixando as borboletinhas voltarem para Deus. Mas misteriosamente ele se sentou ao meu lado, pousou a faca no chão, ainda enrolada na toalhinha, e me tocou mansamente. “Vamos conversar, eu não quero te matar. Você sabe que eu não quero fazer isso.” Completamente desequilibrado. A relação dos meus pais me deixou marcas profundas, mas a separação dos pais dele certamente o havia transformado num psicopata. Corpo e mente em alerta, deixei que ele chegasse mais perto, me abraçasse e até beijasse meus lábios trêmulos. Ele deitou-se do meu lado e... dormiu. Achando graça de minha desgraça, comparei-o ao louco foragido do seriado do Chapolin, Porca Solta: tomou sonífero e dormiu pesadamente no banco da praça. Mas não havia nada de engraçado naquilo. Levantei-me na escuridão (ele havia apagado as luzes e colocado a toalhinha no rosto quando se deitou). Uma imagem deprimente de fato. Fui para a sala, sentei ouvindo a chuva que castigava a cidade. Começou então um choro fraco, só lágrimas quentes brincando de escorrega no meu rosto. Desamparada, fui para a cozinha, perto da pia, depois no meio e finalmente quando chovia já em mim, a minha própria tempestade, estacionei ao lado da geladeira. Aquele foi o melhor lugar para derramar as lágrimas da minha tristeza e frustração absoluta. Não sabia porque, mas estar ali era reconfortante, como se eu tivesse feito isso a vida toda: chorar no vão entre a parede e a geladeira. Como que tomada por uma força invisível, no escuro, fui empurrando a geladeira até o ponto em que meu corpo coubesse todo no vão. Não era mais eu que fazia aquilo, algo me impulsionava e eu só sabia que tinha que fazer. Quando entrei no vão, ainda como um autômato, sabia apenas que precisava chegar até ali. Pus as mãos no alto da geladeira, encostei a cabeça nelas e chorei... Como bruma da manhã a imagem foi aparecendo aos poucos. Uma menina. Uma velha geladeira vermelha. A menina tristonha, que se escondia no espaço entre a parede de azulejos azuis e a geladeira vermelha, cruzava os braços acima do rosto e se punha a chorar todas as vezes que via facas, socos, pontapés e toda a sorte de violência doméstica cruzarem seu caminho. De repente a imagem ficou nítida e a chorosa menina virou o rosto em minha direção. Durante alguns segundos sustentamos o olhar, mas sem nada me dizer ela tornou a virar e esconder o rostinho molhado de volta em seus pequeninos braços. E eu me deixei escorregar no vão, afrouxando o peso sobre as pernas enquanto os soluços altos saíam de mim como trovões do mau tempo. Fiquei ali acocorada, no escuro, sozinha e em prantos profundos. Chovia forte lá fora e dentro de mim. Deixei que as lembranças voassem, junto com os acontecimentos daquele dia, e sobretudo, para aliviar o peso de minhas escolhas erradas.
Por quase uma hora fiquei ali, e só quando estava completamente calma, saí do vão, ainda sem entender que força havia me movido a fazer aquilo, mas sabendo perfeitamente bem por qual motivo.
Nas semanas que se seguiram, continuamos juntos, eu no meu canto e ele no dele com raros momentos nossos. Daquele dia em diante, eu não era mais a mesma pessoa, talvez tenha sido naquela noite chuvosa de abril que eu tenha de fato completado os definitivos trinta anos. Abri mão de muitas coisas desde então. Não discutia mais, não brigava e não via mais nada. O relacionamento entre Michel e Juliana certamente deve ter continuado, mas isso não me importava mais, como tampouco me importava o fato de estar só. Não precisava de outro homem para suprir a falta de um no dia-a-dia. E provavelmente por isso me apareceram 3. Três homens me cortejando ao mesmo tempo, três vezes paparicada. Isso era terrivelmente bom. E muito melhor era saber que faziam aquilo sem ao menos me beijar: eles apenas me desejavam e a mim cabia apenas o poder de alimentar essa vontade sem jamais me deixar tocar. Fazia um bem enorme ao ego ouvir coisas bonitas ditas por pessoas diferentes em momentos diferentes.
Numa noite de sábado, ao chegar em casa da terapia — eu continuei ao longo desses anos e ele parou no caminho — notei que Michel se arrumava para sair. Banho, sabonete, água, perfume, tudo meu! Roupa cuidadosamente estendida sobre a minha cama! Virei no cão: comecei a jogar todo o lixo dele que ainda estava no meu quarto para fora. Rodei nos calcanhares com um soco na cabeça, mordi-lhe a mão enquanto ele tentava novamente me dar uma gravata e abafar meus gritos. Com a água quente no fogo, ele me queimou a mão direita. No meio do caos, o telefone dele tocou “Oi, Michel! E aí, você vai vir?” Era Juliana. Ele estava atrasado para o encontro com ela, o encontro que ele marcou de dentro da minha casa. Então me acalmei subitamente. Pela força, eu não iria vencê-lo nunca. Mas eu ainda era a melhor Lucille de que tinha ouvido falar e na arte da argumentação ainda vai nascer quem me supere. Abaixei a cabeça, choradinha básica Por que você está fazendo isso com a gente? Outro Oscar para mim. Ele se desmontou e logo estávamos sentados, combinando de colocar toda a verdade em pratos limpos para tentar ficar juntos outra vez. Então ele me respondeu tudo o que eu perguntei e foi aí que eu soube, pela boca dele, que esse relacionamento com a saco de osso já durava muito tempo, que a velha alcoviteira abria as portas da casa dela não só para a macumbeira, mas também para todas as vagabundas que o filho queria levar para comer lá. Com o ódio formando um bolo no peito decidi que daria o troco da forma que mais gosto: com as palavras, aquelas que machucam e demoram mais para sarar do que uma pancada ou uma traição.
Sempre digo que a dúvida machuca, envenena, corrói. Mas a certeza mata. E sem mais dúvidas, apenas com a vontade de fazê-lo sentir algo perto do que me havia impingido esses anos todos, decidi responder com a verdade a tudo que ele me perguntava. Eu sabia que a verdade doeria muito mais do que se eu inventasse mil amantes. Minhas dúvidas foram poucas, até porque ele não me interessava mais como homem nem como nada. Mas as dúvidas dele eram muitas e das mais variadas. Com a cara mais lavada desse mundo respondi tudo — na maioria a verdade, noutras poucas mantive o respeitoso silencio para preservar minha história com pessoas maravilhosas e em raríssimas vezes menti desavergonhadamente mesmo, por que era delicioso ver a cara dele acreditando na santa. “Então era verdade?” Era. “Então você fez?” Fiz. “Então você ficou?” Fiquei. Sabia que até ali, a cada resposta minha ele se enchia de ódio e mais ódio mortal de mim. Eu havia sido pega no anti-dopping do namoro por me entupir de substâncias ilícitas encontradas no uso furtivo de outros homens, mas nunca nada ficou provado, portanto era inocente. E agora eu estava ali na frente dele assumindo todas — ou quase todas — as minhas culpas. Somente quando ele tocou no assunto de abril de 2007 é que tive a exata noção de ter chegado onde queria. “Você encontrou o Rodrigo por acaso no dia que eu fui ao cinema com a Joyce?” Não. Nós marcamos antes mesmo de eu saber que você estava com ela, ele me pegou em casa, fomos beber e conversar num quiosque na praia da Reserva, o mesmo lugar onde namorávamos no passado, e quando o dia nasceu e ele deveria me trazer de volta pra casa, desviou o caminho e com o meu consentimento, fomos passar uma manhã perfeita no motel.Muito. O suco voou do copo dele para o meu rosto. E novamente foi buscar a faca. Mesmo com a mão machucada, peitei-o e logo a faca estava no chão. E naquela noite tudo ficou realmente claro e entendido: estava definitivamente acabado. “Então você deu pra ele?!?!”
Apesar de tudo eu não sentia raiva dele, queria apenas que saísse de perto de mim. A confirmação das traições não mudou nada em mim pois já não havia sentimento. Para que ele fosse de vez, foi necessário que eu sozinha, com a determinação de vinte mulheres num corpo só, pusesse todas as coisas dele para fora. Cômoda, gavetas, mesa, tudo. Sozinha. Então finalmente num domingo eu estava livre. Quando tornei a entrar em casa, nos espaços vazios havia apenas sujeira, restos mortais de objetos de alguém abjeto. Somente no dia seguinte é que voltei a fazer comida, depois de pouco mais de um mês sem cozinhar e acendi o incenso de canela enquanto faxinava a casa, que voltou a ter cara e cheiro de limpa.
Passei alguns dias sozinha, porém bem tranqüila. Não chorei, não senti falta. Nada. Só eu e eu. Sempre que me via na internet, ele desfiava seu rosário “Você vai me pagar. Isso não é justo. Deus tá vendo!” Dava preguiça ler aquilo... E eu sempre em silêncio, até que na quarta-feira perguntei o que ele queria. “Eu quero que você seja justa!” Ora, porra! Ser justa no quê, merda? Eu não te amo mais, que injustiça há nisso? “Quer saber? Cansei! Você está com suas fotos?” Mas a última coisa que vi foi a palavra fotos, fechei tudo e parei de dar confiança a ele, já que eu tinha papos mais interessantes para bater. Os dias continuaram bons até que na sexta-feira, muito sem querer, a ficha caiu: fotos... minhas fotos... comigo... meus CDs de fotos!!! Estava esquentando a janta, rapidamente apaguei todos os fogos e corri para verificar o que não queria acreditar: Michel havia roubado todos os meus CDs com fotos, desde as mais simples de festas até os fins de ano com a família. No mesmo pé subi atrás dele. Soltando fogo pelas ventas, ira no volume máximo, bati na porta. Covarde como ele só, foi até a laje saber o que eu queria. Não olhei para cima e continuei batendo na porta, como quem diz seja homem e me olhe nos olhos aqui embaixo. Ele desceu, mas não abriu a porta. De fora eu avisei que tinha ido buscar meus CDs, de dentro ele dizia que não iria me entregar. Pronto. Foi o que bastou para iniciar a confusão. Meu corpo tremia com uma raiva selvagem, animal pronto para o ataque feroz. Havia do lado da porta um vergalhão, possivelmente com o dobro da minha altura e da grossura de uma banana da terra, arma com a qual eu iria atrás do que me pertencia. Tirando força de algum lugar suspendi aquilo e esmurrei a porta. Os nós dos dedos doíam com o peso do vergalhão, mas não desisti. Dentro, o covarde ameaçava ligar para minha mãe, para meu pai, para o diabo. Ele deveria saber que nada me faria desistir. Ou melhor, ele sabia como me enganar e assim o fez: “Seus CDs estão escondidos na sua casa.” Não estão, eu arrumei a casa toda essa semana, tirei tudo do lugar! “Tirou o armário?” Desci todo o caminho do morro que separa minha casa da dele. Era sexta-feira, curso as 07:30h do dia seguinte e eu mais de 01:00h da manhã na rua. Em casa, arrastei o pesado armário e como imaginava, nada havia por lá, apenas alguma poeira não varrida. Tornei a subir, porém, desta vez não mais acompanhada pela raiva: junto comigo estava uma garrafa de álcool e a caixa de fósforos. Minha ex-sogra, sabendo exatamente o que tinha parido e criado, certa vez disse assim para ele: “um dia vão me chamar pra te ver ou na cadeia ou no cemitério”. Que assim fosse. Subi cega e nada seria capaz de me parar, porque eu estava muito mais do que cansada: estava extremamente decidida a acabar com todo e qualquer movimento que aquele verme imundo pudesse tentar contra mim. Michel já havia me machucado, traído, mentido e toda a sorte de coisas ruins que um ser humano pode fazer ao outro, independente do grau de relacionamento. Roubar já era demais! E ele não havia pego meu dinheiro, ele estava tirando de mim o direito de olhar para trás e rever minha própria história. O material — a porta quebrada, computador — tudo o que meu dinheiro pudesse me dar novamente, não me importava que ele levasse. Minha história, não. Roubar minha liberdade era algo que ele não mais faria, nunca mais, nem que nossas mães tivessem que se revezar entre cadeia e cemitério. No caminho, a última tentativa de achar meu pai — que nunca está nos raros momentos em que se precisa dele. Nenhum bar do morro, nada. “Alô, Lucille? Quer vir arrumar confusão comigo? Pode vir. Agora pode vir que eu já chamei a bandidagem!”, Michel me disse ao telefone. Covarde maldito, sabia que essa seria a forma que ele usaria para me enfrentar. O circo estava armado. Nem mesmo em casa meu pai estava, e passar por lá para saber dele talvez tenha sido a chance de sobrevida do Michel. Quase 3h da manhã quando minha mãe levantou da cama me vendo entrar daquela forma tensa. Eu estava já na porta para voltar quando ela foi atrás de mim me chamando para entrar e dormir. Apesar de não saber o que eu tencionava fazer — ou sabia, sim, mãe não se engana —, ela insistiu que eu deveria entrar, que meu pai estava trabalhando e não iria pra casa naquela noite, que estava tarde, frio e que eu não ganharia nada indo atrás de merda de Michel. Nem ele vai ganhar quando eu for, ambos perderemos, pensei e argumentei algo que realmente não me lembro, tão cega de ódio que estava. “Lucille, entra-e-vai-dormir!” Não era mais minha mãe falando comigo. Era Minha Mãe, com a voz carregada de toda a autoridade que ela ainda tinha. Parada na soleira da porta, séria e imponente, ela precisou falar apenas mais uma vez, porque eu sempre soube, durante quase trinta anos, que contrariando uma ordem — aquilo não era um pedido, era uma ordem — eu corria o sério risco de me arrepender depois. E sempre me arrependi. Entrei e dormi com o saco contendo a garrafa de álcool do lado. Michel certamente dormiu com os anjos, ou com a namorada ou com o diabo. Eu não dormi. No dia seguinte, ela me acompanhou até em casa, esperou que eu me arrumasse para ir ao curso e descermos juntas, pois ela iria para o trabalho. Enquanto eu tomava banho, minha mãe fez Neston para mim. Afinal de contas, em nome de Deus Pai, ela é retrato perfeito do que uma mãe de verdade representa. O dia se arrastou pesado no curso. Tentava me conformar com a perda de uma boa parte de mim até a hora de sair — as imagens das viagens, dos meus meninos, da faculdade, dos dias ótimos, das pistas black. Não consegui, no entanto estava mais calma para achar outra ótima solução que não envolvesse danos físicos a ninguém — e essa sim era a estratégia perfeita: a ratoeira para o rato. No caminho para casa, telefone tocou “Cille, tá em casa?” Quando chegamos todos a minha casa, surpresa: meus CDs sãos e salvos. Ué, mãe, matou o Michel? Como ela havia conseguido, não quis dizer. Passei aquela noite revendo tudo, relembrando momentos que só existiram nas entrelinhas daquelas fotos, sorrisos que escondiam tristezas, dias em que eu ganhei o Oscar de melhor atriz.
Quando nada poderia mais nos reaproximar, porque eu não queria mais nenhum contato com Michel principalmente, o destino se encarregou de estragar tudo. Durante a ultrassonografia de rotina, a médica achou um caroço no fundo do meu útero que sugeria um saco gestacional. Tudo em mim entrou em pânico. Grávida e de um filho do Michel, era tudo que eu não queria nem precisava. Grávida até passaria, mas dele não. Saí do laboratório com a orientação de fazer um exame de sangue para confirmar. Desesperada, senti o corredor me esmagar contra a parede. Queria sair daquele corpo, ver a coisa de outra forma e não pensar no futuro, mas não dava. Por isso as tonturas e os enjôos que a outra médica diagnosticou como estresse e me mandou tomar calmante? Valei-me, Senhor! Peguei o celular e disquei. Ele atendeu, eu falei. “Ah, Lucille, que legal! Sério?”. Parecia até um velho camarada meu dando os parabéns pelo aniversário. Não sabia bem porque estava ligando justo para Michel, achei que ele mereceria saber que poderia ser pai — uma nova oportunidade de não criar mais pessoas como ele e educar decentemente. Peguei o resultado da ultra, mandei para ele por e-mail. Não queria que ele me pedisse em casamento para criarmos nosso filho juntos, realmente pensei que seria bom para ele saber. Na resposta do meu e-mail: “Parabéns para você e para o pai do seu filho”. É, em se tratando de Michel, eu ainda não havia errado o suficiente. Naquele mesmo dia peguei o resultado do Beta-HCG: negativo. Ufa! Mas minha ginecologista ainda não estava convencida, pois o Beta poderia mesmo dar negativo se fosse gravidez de poucas semanas. Nova ultra, menstruação, tudo limpinho lá dentro e um alívio monumental, desses que a gente sente quando se anda na rua distraidamente, um carro passa em alta velocidade, tira fino, mas graças a Deus não atropela.
E se eu já estava com todo o pensamento do corpo e coração voltados para uma virada, foi neste fato que encontrei a pergunta certa que caberia na resposta que me atormentava há anos: não é o Michel. Amigas, parentes, amigos, conhecidos e até desconhecidos especulavam todo tipo de motivo para que eu não me separasse dele — sempre achei que fosse amor, mas isso acabou ano passado. E o meu erro talvez tenha sido justamente focar tanto nesse motivo para estar ainda com ele, quando na verdade o caminho mais longo, porém mais cansativo e que requeria mais análise e conhecimento de mim mesma e meus objetivos, era saber o que e quem eu queria e precisava do meu lado. Então, quando estava novamente deitada na mesa de exame, sala fria, mãos estranhas tocando minha intimidade, justamente no lugar que um dia iria abrigar meu filho, fruto sagrado do meu amor por alguém e vice-versa, ser humano que ainda nem existia e por quem eu já me via fazendo sacrifícios — como o de retirar uma “laranja lima” do útero para que ele possa vir com segurança — que, por fim, encerrei de vez um ciclo que durou quase quatro anos: Que tipo de pai eu darei para meu filho?
Não seria justo, absolutamente. Um dia eu havia gostado e até amado aquele rapaz, e o sentimento por maior que fosse jamais justificaria a escolha de uma pessoa desajustada psicologicamente. Filho, não tive coragem de me separar do seu pai, por isso ou aquilo outro e por isso você sofre hoje. Não! Definitivamente não. Nunca mais um par de olhos castanhos amedrontados, metade do rosto na porta, assistindo a um show de horror familiar partindo de quem deveria proteger-lhe das maldades do mundo. Quando contei a uma pessoa que havia cortado o último fio que restava do relacionamento maldito, li a frase “Assim você vai acabar velha e sozinha.” Antes de responder, parei e pensei: tantas vezes Michel havia me dito a mesma coisa durante nossas brigas e admito que isso me afligia: solidão de homem, de uma família só minha, medo de perder o prazo. Mas a idade me trouxe outras percepções... Eu já estava sozinha há muito tempo. E de mais a mais, eu quis responder, qual a graça em ficar com alguém por conveniência e depois viver um casamento amargo, mantê-lo apenas por causa dos filhos e do que os outros iriam pensar, separar e depois entrar noutra furada? Mas achei por bem calar meus dedos. Limitei-me a dizer que eu queria era ser feliz, independente de com quem.
Nesta semana, depois de dois meses após o incidente dos CDs, me vi obrigada a manter contato com ele. Michel sempre foi um ator canastrão: como não conseguia fazer o certo, ficava com o errado mesmo e tentava por a culpa nos outros. Quando o conheci, ouvi dele que a ex-dona não prestava, a própria mãe não prestava, amigos, conhecidos e desconhecidos, ninguém prestava. Qualquer pessoa que não fosse ou não fizesse o que ele queria não prestava. E ele era a vítima, quase um mártir. Descobri a verdade da pior forma: ele nunca foi capaz de argumentar comigo — argumento é fruto do conhecimento, que é produto da absorção de cultura, que é o que fica depois que se procura descobrir o que existe além do próprio umbigo — então me machucava de todo modo que aprendera em casa, especialmente com atitudes baixas, como arrumar outra mulher e ir-se embora com ela. E quando escapava-lhe a coroa da razão, ele apontava o dedo em minha direção, me declarava culpada por provocar nele, intencionalmente, a vontade de agir daquela forma e dizia e mostrava a todos que, afinal de contas, eu também não prestava. A todo custo ele tentou fazer isso com minha família, especialmente com minha mãe. Mas desde o momento que viu minha cara cinza e amassada saindo de dentro dela, que ela sabe exatamente quem e o que eu sou. E nesses anos todos ele sempre sentiu inveja de nossa relação de mãe e filha, insistindo tantas vezes que eu deveria cortar o cordão umbilical e deixá-la mais de lado. E isso tudo porque eu dizia que queria passar mais tempo em casa do que com ele ou quando pensamos em casar e eu não queria morar muito longe dela. Quem é ele para julgar amor de mãe e filho? O resto do mundo tem culpa das frustrações familiares dele? Qual a grande contribuição dele para a vida de um filho? Porra nenhuma! Ou melhor, só a porra. Coitado, nunca saberá que cordão umbilical só se rompe com a morte. Novamente me vi diante desta situação: além de fazer o que bem entendeu, ainda saiu como bom moço e injustiçado. Tendo deixado arquivos inúteis no meu computador, não sossegou enquanto não fez minha mãe levar até ele o computador para que ele os pegasse de volta — mesmo eu tendo dito a ela para formatar o computador, ela achou por bem “ajudar” o pobrezinho que precisava dos arquivos para trabalhar. Uma ova que precisava! Ele já estava muito bem, trabalhando e atochando o dinheiro onde lhe convinha e cabia. Ela não sabia da queimadura, nem da faca. Ela não sabia de nada. E eu, mais uma vez, na intenção de não fazê-la sofrer a minha dor, a minha irresponsabilidade por me envolver com qualquer um, abafei o grito e nada contei. E o que eu poderia fazer diante da “vitória” que ele deveria estar saboreando naquele momento? “A babaca fez o escândalo que quis e não arrumou nada, eu fui lá de mansinho, passei uma cantadinha de menino sofrido na mãe dela e consegui tudo que eu queria.” O tempo todo em que fiquei sozinha não tive o menor estresse com nada e nem ninguém, mas no momento em que minha mãe saiu da minha casa me deixando aquele gosto amargo na boca ao pensar na cara de satisfação do verme, não tive dúvidas: disquei o número dele e soltei todos os animais selvagens em forma de poesia proibida para menores. Mas fui tão boa que até dei um tempo para ele ligar o gravador do celular, pois ele gravava nossas conversas para provar na delegacia que era eu que o ameaçava (desconfio que deva até ter se automutilado para provar que eu o violentava). E, claro, ele assim o fez. Mas eu não tinha a menor intenção de passar dali. Minha raiva colossal era chuva de vento no verão: brusca, porém passageira. Eu queria que ele fosse pro inferno, sim, mas estava com preguiça de levá-lo eu mesma. Quando desliguei o telefone, a “surpresinha”: ele deu início a uma perseguição com ligações, mensagens de texto e voz e até e-mails. “Sabe merda de cachorro? Quando você passa na rua, não chuta, né? Você ignora e desvia. Então faça assim com essas pessoas.”, uma grande lição materna infalível. Vida continuou enquanto o maluco jogava todas as velhas cartas. Será que ele não sabia em que fase eu estava? Será que ele não sabia que aquilo só fazia efeito quando eu o amava? Será que ele estava se prestando aquele papel abobalhado para testar minha paciência? Num só dia contei três mensagens de voz com a mesa bobeira: “Lucille, eu não quero briga, vamos conversar direito e resolver isso juntos, numa boa.” A palavra resolver me intrigou... Contei a duas pessoas, uma foi Cátia, que logicamente procurou abrir meus olhos para a mesma armadilha. E a outra me fez prometer que não iria responder. Nem precisa de promessa, é fato que eu vou ignorar e desviar.
Ontem, sexta-feira, a mensagem de voz chegou assim “Lucille, estou tentando falar com você há dias e você não me responde, nem me atende. É assim mesmo que você quer? Tem certeza de que quer resolver as coisas dessa forma? Assim não vai ficar bom pra ninguém. Eu quero conversar e resolver numa boa, mas você não. Pensa bem.” Eu deveria estar na Lapa as 21:30h, eram 21:48h e eu ainda estava no táxi presa no engarrafamento da Rua do Riachuelo. Tensa pela demora, tensa com as ligações idiotas que eu não queria atender, tensa com o taxista querendo papear sobre a final da Copa, aproveitei o momento e ajeitei a bola para dar o fio de gol. Vem cá, essa sua mensagem-ameaça diz que eu tenho que resolver algo com você. Que pendência ficou pra ser resolvida? “Não tem pendência, não foi ameaça, eu só quero saber se é isso mesmo que você quer.” Aff! Ééééééééé doooooo Brasiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiilllllllllllll!!!
Ele realmente achou que a minha ligação fosse magoazinha de quem está com saudade e precisa de algum argumento pra chamar a atenção. Não era. E a palavra “resolver” significava “eu vou sair com outra pessoa, estou saindo, comendo e pronto para ficar sério com ela, mas ainda existe uma esperança pra você, mas vem logo se não dança.” Já vi esse filme, parte 1 e parte 2. No primeiro, que passou várias vezes, eu disse sim, fiz um pouquinho de força contrária, mas me entreguei fácil. No segundo, disse não, ele se atracou com a macumbeira e depois que ela lhe deu o pé na bunda (vangloriando-se do feito, inclusive), ele veio até mim, eu nem fiz força alguma e fui ao sabor do vento, porque sentimento não tinha mais. E essa parte do filme foi sessão única. A fita enrolou no projetor e um anjo mandou avisar que não passará mais.
Sei que isso tudo aconteceu porque eu permiti. Apesar de Michel ter problemas, ele poderia tê-los alimentado longe de mim, naturalmente. No entanto, nunca fui capaz de abandoná-lo a própria sorte para que vivesse de seus próprios fracassos. Pelo contrário, cuidei deles até que se tornassem meus também. E nunca fui forte o bastante para ver que eu não precisava dele para nada, mesmo achando que ele era o mais importante da nossa história. Mas nunca é tempo demais. Quando ele se foi, me matou. Eu morri atropelada e esmagada por um amor que se tornou mágoa, doída como espinho no pé. Ressuscitei dos mortos-vivos e aprendi a viver sozinha, pois foi assim que passei esse último ano.
As feridas do corpo já estão saradas, embora as cicatrizes da alma ainda estejam visíveis. Mas no coração... Bem, o coração já está recuperado, pois entendeu que tudo isso teve um propósito: essas desventuras fortaleceram o conjunto para que ele possa trabalhar mais tranquilamente, sem a sobrecarga de decidir tudo em todo momento e acabar cometendo erros graves de julgamento.
Não choro mais e não sinto saudade. Apenas vivo um dia de cada vez, sem afobação, certa de que tudo acontece quando tem que acontecer. Sei que sou ótima e vivo muito bem sozinha, apesar de ficar melhor quando acompanhada, sei mais ainda que não basta estar do lado, há que existir amizade.
Deitada na semi-escuridão — apenas um filete de luz escorria pela porta do banheiro enquanto a água lá dentro caía forte do chuveiro frio — eu ouvia Ana Carolina cantar e suas palavras me invadiam a mente como uma prece: “Já sei olhar o rio por onde a vida passa, sem me precipitar e nem perder a hora. Escuto o silêncio que há em mim e basta. Outro tempo começou pra mim agora.”
Porque o que eu quero mesmo é ser feliz.



































Hoje, 11 de julho de 2010, às 03:31h, madrugada morna de domingo, finalizo a história que queria contar. Esta é a minha Faroeste Caboclo, música épica da Legião Urbana que conta uma história quase fantástica como a minha, na qual eu também não acreditaria se não tivesse realmente vivido tudo isso. São 16 páginas de memórias, aproximadamente 11.970 palavras que nasceram do desejo de ser honesta, comigo primeiramente, e depois com a vida e com todos os que torcem por mim. Levei cinco dias a escrever, porque não são coisas que saiam fáceis assim: muitas vezes eu quis bater a cabeça e esquecer de tudo que havia passado nesse relacionamento destrutivo. Demorei o tempo necessário para não correr o risco de ser injusta, queria olhar para tudo isso não mais com ódio por quem me fez mal — ele cumpriu o papel dele —, queria, antes de tudo, desabafar e mostrar para mim mesma que, como as coisas boas, as ruins também hão de fazer parte desta caminhada. E o que me fará vitoriosa será a maneira como lidarei com todas elas.
L.