sábado, 23 de agosto de 2008

Momento

Como quem não quer nada, chegou sem fazer barulho. Em verdade, era esperado, era desejado desde sempre.

Ela sabia e ansiava por aquele encontro, o momento em que todas as dores do passado ficariam, finalmente, enterradas com todas as lembranças e mágoas. Dali para frente, teria a vida para se ocupar e ser feliz. Tinha em si uma certeza: era sua vez agora, teria dentro do peito todo o maravilhoso sentimento que sempre quisera, e dessa vez, reviraria-se para dar tudo o que tivesse em si a fim de que ambos pudessem ser felizes. Não queria mais chorar, a menos que fosse de um prazer voraz e intenso.

Ele queria e desejava, mas se entregar não era tarefa fácil, não sabia como, mesmo sabendo o que queria. Ela estava ali, bem ao alcance de suas mãos e queria guardá-la no coração também. Suas dúvidas e medos tentavam lançar por terra o sentimento que carregava no peito, recém-nascido, tão rápido quanto um raio e tão assustador quanto um trovão. Fosse o que fosse, não queria mais perder tempo. Ela seria sua, estava decidido.

Ambos olharam-se como se todo o mundo em volta tivesse sumido, havia apenas dois pares de olhos enfrentando-se, medindo os corpos e clamando pela proximidade. Tudo o mais em volta era claro e calmo. O barulho da água lá fora era a música que escorria do céu, serena em seu caminho rumo ao solo. A noite ia solta e alta, mas quem haveria de se preocupar com horas? Não havia mais nada com que se preocupar. Da janela, era possível perceber que em nada alteraria a hora: seria escuro lá fora e claro para os que se perdiam no momento.

*-*

O dia não havia sido fácil para ela, recém saída de um tumultuado relacionamento, sofrera em demasia com a falta de atitude do ex-companheiro. Não, não era companheiro, era um inimigo que andava ao seu lado. Ressentia-se de não ter conseguido concluir todos os projetos, o casamento, os filhos, mas não teria conseguido ser feliz ao lado de alguém que não respeitava seus sentimentos e necessidades. Ela era uma mulher e não uma secretária particular! Custou-lhe perceber que precisava sair dali, tentar era muito difícil, enfrentar as opiniões contrárias, dar explicações a família e amigos, e, sobretudo, fazer o papel de carrasca. Afinal, ela sempre seria a vilã e ele, o coitado profissional.

Naquele dia fazia um sol quase mágico. Ela estava só, mais uma vez deixada em casa acompanhada de um balde de mentiras e omissões. Resolveu sair. Arrumou-se como se fosse a algum evento, com cuidado e simplicidade, apenas uma saia e uma camiseta compunham a imagem que lhe agradava. Tudo estava animado, ela parou em sua livraria preferida e por pouco não abraçou a vendedora, tamanha era sua satisfação em estar ali. Suas saídas ultimamente eram, quando muito e além do trabalho, casa da sogra e cinema. Bate-estaca. Passeando pela prateleira de livros para trabalho, sentiu-se enraivecida de só pensar nestas coisas: enxoval, trabalho e o que fazer na janta. Pegou um livro chato e barato, afinal, deveria guardar dinheiro para casar. Rodopiou pelos calcanhares, decidida a ir-se embora. Deteve-se diante da prateleira de lançamentos, todos caros e interessantes, ficções, biografias. O livro de capa vermelha sugeria-lhe algo de libertação. Folheou-o. Em instantes o peito palpitava de alegria. Subiu para o Café da livraria, e como há anos não fazia, pediu um cappuccino e um quiche de ricota. Estava sendo invadida por uma esquecida onda de felicidade, estava sozinha e se bastava. Enquanto sorvia demoradamente o café, lia o livro e sentia-se cada vez mais feliz. Uma decisão, ou melhor, duas, cresciam com força descomunal. Decidiu-se, pagou a conta com o mais majestoso de seus sorrisos e voltou para casa. Com seis livros e uma fantástica sensação de liberdade.

Não queria atender ao telefone, não queria que aquela maravilhosa sensação acabasse com mais uma interminável seqüência de brigas por ouvir tantas mentiras. Queria continuar sozinha, estava bem assim. Música alta, dançando sozinha pela sala, ela teria que sair antes que ele chegasse a casa. Quase conseguiu. Ainda teve o desprazer de esbarrar com ele na porta e assustou-se quando o viu. Não por ele, mas por ter a exata noção da repulsa que crescia em seu coração. Não conseguiu sorrir, não queria beijo, muito menos o abraço. Nenhum “carinho” de mentira.

Como não havia outra forma de ser, separou-se. Desta vez, sem traumas. Não havia mais nada que os ligassem, nem sonhos, nem aventuras, nem ao menos um copo de chope. Nada mesmo. A tristeza ameaçou se instalar, mas os bravos e leais amigos não permitiram. Todos os dias havia um papo, uma distração para que a mente ficasse ocupada e não permitisse que o instinto acostumado a dormir agarrado a fizesse voltar. Todos tinham a mesma idéia: próximo da fila. Mas ela não queria se entregar ao primeiro que aparecesse, já tinha feito isso e o resultado era catastrófico. Iria esperar que algo a tirasse do chão, e aí, saberia ter encontrado a pessoa certa.

*-*

Jurara para si mesmo que pararia. Tentava a todo custo estar num lugar só, com apenas uma pessoa, mas além do trabalho que o impedia, nenhuma mulher parecia querer o saudável hábito de ter um homem para a vida toda. Talvez eu tenha cara de brinquedo, pensava ele entre um relacionamento e outro, invariavelmente de poucos meses, tempo em que ficava de folga pelos países que passava. Trabalhar na ponte aérea mundial não era um bom negócio para o coração. Precisava voltar ao seu país, estar com a família, casar e criar a própria família. O dinheiro que ganhara seria suficiente para não precisar mais trabalhar por lá, no máximo, teria o próprio empreendimento.

Pensava na volta há algumas semanas, farto da inconstância, da frieza de mulheres européias, da independência extremada das norte-americanas e da dependência filial das árabes. Queria mesmo se acabar num belo corpo farto, de curvas perigosas, encimado por um sorriso e comandado por um bom coração.

Como não era muito afeito a longos planejamentos, deu-se o tempo necessário apenas de acertar contas no escritório central da empresa. Dormiu no avião, em sua última viagem a trabalho, e quando abriu os olhos, tinha o mar, as matas, os edifícios, tudo com a cara e o cheio da terra que deixara anos atrás em busca de uma vida melhor. Conseguira e estava de volta, desejoso de estar enfiado na primeira roda de samba que avistasse, com todos os amigos e mulheres a que tivesse direito.

*-*

Sua cabeça pesava, a separação teria sido mais tranqüila se não tivesse deixado tantas pendências a tratar com o ex, e por vezes ela imaginava se voltar não acabaria com o inferno de ter de aturá-lo pelo telefone, por e-mail, mensagens de texto no celular. Definitivamente, a resposta era não. Se não há amor, não há mais nada.

Uma de suas mais caras amigas havia tempos a convidava para conhecer um samba lotado de “homens disponíveis e legais”. Sua amiga também fora séria um dia, mas as rasteiras da vida a fizeram repensar o conceito de felicidade. Não podendo mais aturar o ex a acusando dia e noite de estar com 20, 30 homens para justificar o rompimento e sua incompetência, decidiu se deixar divertir no tal samba. Na noite combinada, elas se arrumaram juntas, rindo e escolhendo roupas e maquiagens. Como santa ou como puta? Tanto faz. Hoje eu só quero beber até cair e o cachorro lamber minha boca. Horas depois, a bordo de um salto 15 (seu preferido e esquecido no armário), um novíssimo vestido mezzo santa mezzo puta, ela mal se reconhecia em frente ao espelho. Como poderia ter se esquecido de si mesma? Em dois anos de um namoro conturbado, havia esquecido como poderia ficar bonita e atraente com pouca maquiagem e um decote estratégico.

*-*

Metade da turma queria ir ao baile charme, metade ao samba. Apenas ele iria para ambos ao mesmo tempo, queria aproveitar tudo o que deixara para trás e que era o que realmente o fazia feliz. Qual dos dois tem mais mulher?, alguém perguntou. Depende, mais bonita ou mais fácil?, foi a resposta. Partiram em comboio para o samba. No carro, guiado pelo amigo de infância, de longas peladas na rua e baralho em casa, ele ria satisfeito ao contar suas aventuras sexuais com os mais diferentes tipos de mulheres, de como quase se casou com uma brasileira que vivia em Roma, porém, ela se tornou, com o tempo, a própria européia e decidiu que ele seria um bom reprodutor, assim, sem mais nem menos. E ele fora obrigado a negar algo que tanto gostava, pois temia que ela tentasse a qualquer custo. Naquela noite, a caminho do samba, com amigos e a latinha de cerveja na mão, ele só pensava em continuar aproveitando a companhia dos amigos e contado o que vivera, já o faria saber que a volta tinha valido a pena.

*-*

Bebiam e conversavam animadamente com mais duas amigas, mas ela não se sentia a vontade para dançar. Você se separou, não ficou viúva!, ralhou uma das amigas ao notar sua falta de vontade em dançar, logo ela eu sempre fora pé de valsa. Largou a cerveja a partiu para a vodka. Pura. Até o cachorro lamber a boca..., pensou e entornou o copo garganta adentro, sob os aplausos das amigas, contentes em vê-la reagindo. Agora finge que teu ex ta no copo, enche de novo e engole!, sugeriu uma delas. Mais que prontamente, ela seguiu o proposto e rosnou antes de levar o copo à boca: morre afogado, filho da puta!

*-*

O grupo entrou no salão já quase lotado e teve dificuldade para encontrar uma mesa. O samba corria solto quando um dos rapazes avistou uma amiga de faculdade, muito bem instalada numa mesa em companhia de outras três moças. Número par, pensou o esperto e foi até elas, levando consigo os outros para apresentações e ter um lugar para apoiar a cerveja. Cumprimentaram-se todos com um rápido “prazer” e puseram-se a acompanhar o samba, cada um com seu jeito de dançar. Ela levantou-se para ir ao banheiro, um pouco zonza devido aos dois copos de vodka, mas sabia perfeitamente que primeiro era o pé direito, logo após o esquerdo. A volta do banheiro deu-se em uma eternidade, que ela não soube precisar, mas jurava ter visto o ex pelo espelho dizendo pra ela “a culpa é sua”. Saiu ainda mais zonza e irritada com o morto que voltou do copo de vodka. Quer saber?, determinou ela, a noite é minha! Bem firme e equilibrada em seu salto 15, foi sambar. Entoava as canções como se fosse parte do grupo que tocava, seu corpo suava gelado enquanto remexia-se ao som dos pandeiros e cavaquinhos.

Logo atrás, dois pares de olhos a observavam, um faminto e outro divertido. Como são engraçadas as mulheres daqui, totalmente despreocupadas do que os outros vão pensar. São mais leves e espontâneas, falou um. Que bunda!, comentou o outro.

Quando ela voltou pra mesa, após quatro músicas seguidas, um casal já estava formado. Tem gente que não perde tempo mesmo, pensou. E o casal formado, resolveu que seria legal sair dali, ir pra um lugar mais tranqüilo. Alguém atalhou: motel, já?! Gargalhada geral, mas não era isso, e sim, o tal baile charme. Saíram do samba para procurar o lugar.

A caminho do estacionamento o grupo de oito pessoas parecia uma enorme turma escolar, com muita risada e falatório desordenado. Tudo estava em paz e divertido, ela pensou. Quando soube que iria no carro de um dos rapazes, estacou. Olhou pra ele ainda zonza e confusa. Queria ir de táxi, não conhecia aquelas pessoas, mas se sugerisse aquilo as amigas a mandariam direto pra casa lavar a roupa do maridinho. Respirou fundo, tentou relembrar os tempos de jovem solteira e inconseqüente, deu um passo à frente e entrou no carro. Ao seu lado, o rapaz mantinha fiel a latinha de cerveja na mão. Era impressão sua ou ele estava rindo dela? Não tinha mais paciência para meninos em corpos de homem e se irritou.

― Qual a graça?

Ele fora pego totalmente desprevenido. Não imaginava que ela tivesse percebido ou escutado o que ele pensava. Será que tinha pensado alto?

― Hã? Desculpa. Não entendi.

Ela se recostou no banco traseiro, ainda esbaforida de sambar e aborrecida por sempre ter que conviver com essas eternas crianças que usam roupa de adulto. Virou o rosto pra janela e foi pensando na vida, um pouco entristecida.

― Desculpa, não estava rindo de você.

Ela girou a cabeça, olhou-o e ignorou solenemente.

Talvez tenha me enganado, ele pensou.

― Olha, posso desfazer a má impressão?

Ela já estava pensando longe, se ajeitou no banco, fuzilou-o com o olhar por interrompê-la de seus devaneios.

― Claro.

― Desculpa mesmo, não estava rindo de você. Estava pensando que você é divertida, engraçada.

― Hum... eu realmente tenho cara de palhaça. Normal. – lançou-lhe um meio sorriso cínico e irritado.

Pronto, o efeito da bebida havia passado e ela estava com o costumeiro mal humor.

― Errado. Vi você dançando e pensei que deve ser uma pessoa alegre, que não se preocupa com a opinião dos outros a seu respeito, não estava debochando de você. Me desculpe se passei a idéia errada.

Agora ele tinha ficado irritado. E ela viu que poderia ter sido menos grossa, menos fechada, menos ela mesma.

― Acho que tenho que pedir desculpa, né? Não deixei você se explicar e fechei a cara. Mas não vou pedir, estou chateada, outro dia eu peço. – e virou-se pra janela outra vez.

Imediatamente ele irrompeu numa sonora gargalhada. Riu tanto que a deixou mais irritada, porém com vontade de rir também. Ao fim do ataque de riso, ela o olhava fixamente, intrigada.

― Agora foi deboche?

― Não de novo. Eu tinha esquecido como mulher pode ser tão pequena em tamanho e tão abusada nesse país. Se a gente estivesse no Paquistão, eu poderia te castigar, com a permissão da Lei.

― Pois é, se estivéssemos no Paquistão, eu não estaria no carro, nem no samba e nunca teria te conhecido, pois seria casada, mãe, religiosa e se você risse de mim eu poderia mandar te prender por flertar com uma mulher casada, que é crime religioso por lá.

Ela não deixava barato e ele ficou surpreso com a sua desenvoltura com as palavras. Mulher inteligente tem o valor mais alto.

Ele estendeu a mão.

― Bandeira branca da paz?

Ela sorriu e apertou a mão dele. Mão grande, forte.

― Já bebemos juntos, brigamos, fizemos as pazes e eu não sei seu nome.

― Anna.

― Marcelo.

― É um prazer que você me conheça.

Ele riu novamente. ― Eu não falei que você tinha cara de divertida?!

Chegaram ao baile, muito mais lotado que o samba. Como já tinha passado por palhaça e estressada, ela decidiu pegar de leve na bebida. Caipirinha. Com vodka. Minutos depois no centro da pista, ela reinava absoluta. Todas as músicas, todos os movimentos, tudo era ela. Em algum canto, alguém a observava detidamente, acompanhando cada gesto com a delícia de quem sorve uma taça de vinho.

A noite chegou ao fim, moças deixadas em casa, ela acabou sendo a última. Combinadamente. Ele despediu-se, e mais uma vez pediu desculpa pela má impressão que passara, mas ela não estava exatamente em condições de perdoá-lo ou não. Só queria dormir. Novamente ele achou-a engraçada, até mesmo bêbada ela era séria.

O dia seguinte veio como uma bomba na cabeça. Tudo doía, a mente girava e o gosto horrível de sapato na boca não deixava dúvidas de que tinha se divertido demais. Levantou-se com dificuldade, no caminho percebeu algo estranho. Havia um buquê imenso de rosas brancas descansando sobre a mesa. Despertou do semi-sono imediatamente, e muito surpresa foi ver de quem era. Não tinha nome, nada que identificasse o remetente. Mas não teve muita dificuldade de descobrir. No cartão havia apenas uma coisa escrita: “Hahahahahahahahaha!!!

Durante a semana viram-se quase todos os dias. Ficaram amigos e falavam-se todos os dias. O bom humor de ambos era a prova de que se divertiam e faziam bem um ao outro. Não houve sequer menção em partir para beijo ou algo mais sério, estavam bem assim. Nos dias em que o mundo parecia querer desabar, ela encontrava nele um excelente refúgio. Não havia segredos entre eles, cada dia havia uma nova história pra contar, algo a ser descoberto. Ela, preocupada com o rumo das coisas, pensava em se afastar, já que ele não fazia a menor questão de avançar o sinal ou se comportar como um homem normal e faminto. Ele, preocupado com o rumo das coisas, pensava em avançar, mas temia que ela o interpretasse mal, como um homem normal e faminto.

Era uma sexta-feira quente, ânimos fervendo, amigos reunidos no mesmo bar. Quando não poderia mais evitar, ela estava frente a frente com o ex. Ficou lívida ao perceber que ele a estava seguindo, afinal, não haveria outro jeito de saber que ela estaria ali. Sentiu-se invadida, ultrajada, quase uma criança que foi pega fazendo arte. Mas ela não era criança e não devia mais nada a ele. Sentiu raiva de si, dele, muito mais de si. Não queria estar ali, com aquelas pessoas, se divertindo. Queria estar em casa, fazendo comida pra ele, depois de um dia inteiro de trabalho, lavando roupa, comendo, engordando, sendo enganada e traída. Porque ele não a deixava em paz?

Ela levantou da mesa, saiu do bar deixando todos para trás, inclusive a quem não queria mais sair de perto. Tentou correr, mas suas pernas trêmulas não obedeciam. Sentiu um solavanco, algo a parara. Ela não tinha visto, não sabia como e nem por onde, estava atordoada demais, apenas sentiu que mãos fortes em braços igualmente fortes a levavam com firmeza e carinho para algum lugar longe dali. Não percebeu quantas ruas cruzaram, quantas ladeiras subiram, entendeu apenas que não estava sendo levada para sua casa. E não se opôs.

A casa, era uma casa, não apartamento, tinha uma pequena varanda com flores brancas e um banquinho. O portão de ferro pesado, apesar de tudo, era aberto com o controle remoto do carro. A mistura da antiga fortaleza, com a poderosa tecnologia. Ele a tirou do carro, ainda sem dizer meia palavra e caminharam lado a lado rumo à enorme porta de madeira, muito bem talhada. A casa em si era grande para alguém só e excessivamente bonita, muito mais ainda por dentro. Tudo organizado, disposto em ordem consoante com outros objetos, paredes e janelas. Parecia cenário de novela. De repente um alarme soou dentro dela: tinha de haver uma mulher ali. Não se conteve e perguntou onde estava a esposa. A resposta seca, dura e curta: não tenho. Ela arrependeu-se ter perguntado, pois entendeu que ele estava aborrecido. Tentou manter a calma.

Sentou-se no confortável sofá caramelo da imponente sala. Se tivesse tido mais paciência, veria que ali realmente não poderia ter uma esposa, estava tudo no devido lugar, arrumado demais. Ainda sem falar, ele a deixou e saiu em direção do que ela imaginou ser a cozinha, mas não ousou ir atrás. Ficou quietinha, ouvindo apenas a própria respiração. Ele voltou com um copo de água numa das mãos, na outra, um bombom recheado de damasco. Ele sabia que ela adorava damasco. Estendeu a ela a água, que a bebeu toda, de um gole só. Sentou-se ao lado dela e pôs-se a olhá-la agudamente.

― Tá mais calma?

Ela ainda tremia um pouco, mas estava se acalmando aos poucos. Apenas balançou a cabeça assertivamente. Olhava-o fixo nos olhos, enquanto sentia o corpo pesar sobre o sofá macio. Aos poucos foi relaxando, sem desgrudar os olhos daquele homem de 1,90m, bronzeado e muito sério parado ao seu lado. Quando ele lhe tomou as mãos, tudo se foi em correnteza. Não havia mais jeito de segurar, e deixou que uma a uma as lágrimas formassem fila, e escorressem de seus olhos em cascata. Ele a abraçou e aninhou-a no peito largo, enquanto afagava seus cabelos. Quando acabou, sentiu um pouco de vergonha de si mesma por se comportar feito criança assustada e chorona. Ele a ajudou a secar o rosto e ela já cansada daquele pesado silêncio, assumiu a direção.

― Desculpe pelo que aconteceu. Não sabia que ele iria atrás de mim, não sei como descobriu onde eu estava. Não tinha mais contato com ele, não queria, eu não... – foi cortada no meio de sua chuva de desculpas, com um leve toque dos dedos dele em seus lábios. E ela não sabia como nem porque, mas gostara daquele toque.

― Você não tem que me pedir desculpas. Eu acredito em você, sei que não queria. Acho que eu que preciso pedir desculpas por duas coisas. – ele admitiu e baixou os olhos.

Ela o olhou intrigada, o que ele tinha feito? Ele continuou.

― Primeiro por ter trazido você pra cá sem perguntar se queria vir. Não sabia se eu poderia ir pra sua casa, mas sabia que você poderia vir pra minha, por isso trouxe. Queria que você se acalmasse e aqui é bem tranqüilo, como você vê.

Ambos sorriam, finalmente. Ele ainda tinha coisas a desabafar. E ela o ouviu atentamente.

― Quero que me perdoe por ter ficado zangado. Eu não tinha o direito de me aborrecer com você, não temos nada, você não me deve explicações. Mas eu fiquei nervoso quando teu ex apareceu, você quis ir embora, parecia que iria embora com ele. Não queria que você fosse embora, poxa, tava tudo indo bem, todo mundo lá, queria ficar mais tempo com você, eu pensei, eu... – desta vez, foi ela quem o calou. Não mais com a mão, com um leve toque de lábios.

Ela se ajeitou imperceptivelmente no sofá, enquanto aquele homem enorme ao seu lado colocava toda a mágoa pra fora, como um menino que explica a mãe porque fez arte, já esperando o castigo. Ela percebeu que ele estava zangado, sim, não por ela ir embora, mas por ela deixá-lo. No momento que captou nas palavras e na voz dele o que de fato ele estava sentindo, não teve dúvidas, calou-o com um roçar de lábios, carinhoso e provocante para aplacar o ciúme. Pego de surpresa com o gesto dela, ele não conseguiu pensar com clareza no passo seguinte. Olhou-a ainda com os olhos inchados do choro e teve um ímpeto de tomá-la nos braços, guardar e nunca mais deixar que fosse embora. Ajeitou-se, então, segurou as mãos dela e a levou para a enorme janela da sala. Lá fora, uma perfeita Lua reinava no negro céu. Abraçados, enquanto a vida corria lá fora, uniram-se num quente e urgente beijo, e tudo o mais perdeu o sentindo.

O dia seguinte estava mais festivo que de costume, era um sábado nublado lá fora e ensolarado naquele pequeno coração feminino. Quando o telefone tocou, ela imediatamente reconheceu a voz do outro lado, era o homem do beijo maravilhoso.

― Boa tarde, minha preta chorona! – ambos riram diante da lembrança de algo que poderia ter sido ruim, e, no entanto, deixou tudo melhor que estava.

― Dormiu bastante, hein? Tomou sonífero? – ela gracejou.

― Não, estava sonhando com a mulher mais bonita que eu já vi, por isso não queria acordar. – ele devolveu, mas dizia a verdade do coração.

Ela sabia que deveria manter a distância, não pressionar, mas com tudo aquilo apertado no peito, não conseguiu.

― Nos veremos hoje? – era quase um pedido.

― Hoje eu queria ficar em casa... – ele disse sem muita força. Ela sentiu e entendeu o recado. Todos são assim, pensou. Claro que ele não iria ficar comigo, hoje é sábado dia dos amigos, concluiu. E ele perguntou o mesmo.

― E você, vai ficar em casa?

― Não sei, acho que sim. – pronto, já estava tomada pela raiva. Queria tanto vê-lo...

― Então que tal nós ficarmos em casa juntos? Você pode vir pra cá, comemos pipoca e vemos filme, que tal?

Ela pulou. Bateu a cabeça no teto de tanta alegria, mas manteve-se calma.

― Tudo bem, que horas você me pega? – bem que ela tentou não parecer afobada, mas não deu. Ele iria achar que ela estava se oferecendo, com certeza.

― Assim que você se arrumar. Estou aqui no seu portão.

O dia foi ímpar, aproveitaram o dia nublado para pedalar na ciclovia. Ela, medrosa e ele, radical. Atravessaram duas praias, ele a incentivando e ela pensando a todo o momento em parar, especialmente onde achava que não passaria. Mas ele mostrava que ela podia e ela passava. Almoçaram na beira da terceira praia, pois ela estava genuinamente cansada de pedalar, e ainda teria a volta. Como combinado, foram passar o resto do dia na casa dele. Havia entre eles uma harmonia que ambos jamais tinham experimentado, o encantamento que só aumentava e dava a certeza de que estavam no caminho certo. E tudo estava tão bom, que não queriam mais que acabasse. Ele pediu que ela dormisse lá, ela queria, mas disse que não, ele insistiu e ela cedeu. Assistiram ao filme, comeram pipoca, chocolate e toda a sorte de besteiras que havia pela casa e que puderam pedir por telefone. A chuva descia com a madrugada e após os filmes, decidiram que era o momento de se recolher. E aí surgiram as dúvidas. Dormir junto? Separado vai dar tristeza. De mãos amarradas? Até as dúvidas eram diabolicamente divertidas.

Não havia cama no quarto, ele dormia num fabuloso colchão king size milimetricamente plantado no chão. Tudo era branco e iluminado. Era o quarto mais bonito que ela já vira. Graças à visita quase diária da faxineira.

Ela foi se banhar e levou uma eternidade no chuveiro, não que estivesse muito suja, mas também para adiar o momento do confronto na cama. Se ele tentasse, o que ela deveria fazer? Ceder fácil, resistir ou negar veementemente? Terminado o banho, arrumou-se para dormir, prendeu os cabelos num coque no alto da cabeça e voltou ao quarto. Tudo havia mudado. Não tinha luz, apenas pequenas velas em duas cômodas. As cortinas da enorme janela estavam fechadas e na cama, um edredom pele de urso convidava a ter uma noite, no mínimo, agradável. Onde ele estava? Descobriu quando ouviu a água do chuveiro cair. Enquanto esperava, abriu o laptop para jogar e descobriu que o papel de parede dele era uma foto de ambos, tirada logo no início dos encontros, enquanto jantavam num restaurante. Ao mesmo tempo em que a deixou feliz, a assustou. Será que...? Não, não poderia ser. Fechou tudo e foi deitar-se. Ao levantar o edredom, uma rosa branca marcava aquele que seria o seu travesseiro. Sentiu vontade de correr e juntar-se a ele no chuveiro.

Tão sorrateiro quanto saíra, ele estava de volta ao quarto, quieto e silencioso. Ela o acompanhou com os olhos, sem emitir meia palavra. Não ousava nem respirar para não perder nada do que se seguia. Majestosamente ele se movia pelo quarto, com a toalha nas mãos, secando os cabelos. Parou perto o suficiente para deixá-la sufocada com a visão do corpo másculo, bem feito e bronzeado. Ele trajava uma cueca box branca, que teve o poder de jogá-la contra a parede. O peitoral era visível mesmo coberto pela camiseta de malha, os ombros largos de nadador, o cabelo bem baixinho e um perfeito sinal de nascença do lado esquerdo da nuca formavam o quadro do homem que estaria ao lado dela em pouco tempo. Haveria algo de imperfeito naquele corpo? Ela duvidava. E mesmo que houvesse, ela o quereria assim mesmo.

Finalmente, ele sentou-se na cadeira e a olhou diretamente. Estava fingindo não ser observado, sabia que ela ficaria envergonhada e pararia de admirá-lo. Levou o dobro do tempo apenas para deixá-la à vontade. Mas se enganou ao pensar que teria ao seu lado uma virgem inocente.

― Marcelo?

― Oi, Anninha.

― Acho que você deixou o chuveiro aberto, tô ouvindo pingos. Mas deixa, pode ficar aí, eu fecho.

Graciosamente ela retirou o edredom de cima do corpo e levantou-se rumo ao banheiro. Foi a vez de ele ficar sem respiração. Ela usava uma fina camisola preta, com bordados e reveladora. Assim saiu do quarto, satisfeita em ter deixado-o com aquela cara de pastel. Quando terminou de “fechar” o chuveiro, a volta foi ainda pior. De frente e contra a luz da vela, ela estava mortalmente linda e ele não pôde deixar de perceber que por baixo da camisola, ela usava uma minúscula calcinha preta e vermelha. De repente ele se sentia um completo idiota diante daquele 1,68m mais perfeito que já vira em toda sua vida. Ela não deixou aquilo barato.

― Ei, que foi? Que cara é essa?, disse, com um sorriso de canto de boca.

― Hã? ... Eu... é... achei seu... coque, seu coque está lindo., balbuciou, sem coragem de dizer o que realmente achava, poderia parecer grosseiro.

Mas ela não tinha ficado satisfeita em perceber o quão confuso ele estava.

― Algum problema com minha roupa? Se quiser... eu tiro. – Deixou-o estendido no chão, mas ele se recuperou rápido.

Levantou-se da cadeira, apagou algumas velas, pegou-a no colo e a deitou sobre o colchão de lençol branco, juntou-se a ela e parou para observá-la. Ficaram olhando-se demoradamente, decisões silenciosas e importantes sendo tomadas naqueles minutos cruciais.

Jamais senti isso, não é possível que seja apenas mais uma. Não quero que seja mais uma, quero que seja pra sempre.

Mergulhar de cabeça outra vez? Não quero ter medo, quero que seja bonito, perfeito, quero ser feliz assim pra sempre.

Aninhando-se junto a ela, ele beijou-a por todo o rosto, levando-a a suspirar forte, e parou em seus lábios, local já conhecido e onde adorava estar. Ela apertou-o contra si, passeou com as mãos por suas costas e peito. Tudo havia parado, só havia no mundo aqueles dois amantes ansiosos. Ela deitou-o de costas, pulou para cima dele e beijou-o no pescoço, arrepiando-o. Fez carinho no peito, beijou e mordeu de leve os lobos das orelhas. Sabia que ele não poderia resistir muito tempo assim, mas queria correr o risco. Com muito cuidado, moveu-se lentamente sobre ele. Sentiu que ele pousava as mãos sobre seus quadris numa tentativa comedida de não deixá-la parar. Enquanto estava ali, sentia-se senhora absoluta da situação, o controle era dela. Poderia levá-lo como quisesse, maltratava-o o quanto podia, ora depressa, ora com displicência. Ela sentia o quanto ele estava sedento por ela, sentia-o pressionar as coxas e segurar-lhe a cintura com força. De repente, sem que ela pudesse protestar, passou da condição de controladora para controlada. Ele estava no comando agora, mas não pretendia ser tão cruel quanto ela. Docemente abaixou as alças da fina camisola, que teriam saído até mesmo com um assopro. Virou-a de costas e observou o dorso nu e a pele macia convidando a tocá-la. Retirou-lhe a camisola pela cabeça, soltou o coque dos cabelos e constatou o que já imaginava, tudo naquela mulher era maravilhoso. Ele sentou-se e colocou-a sentada em seu colo, de frente para ele e assim viu estampado em seu delicado rosto, que havia ali um vulcão prestes a entrar em erupção. E qual seria a força capaz de impedir? Tocou-lhe os mamilos rijos e morenos, ainda com uma suave marca do biquíni e ela estremeceu, parecia que iria desabar. Estava aflita, ansiosa demais, queria-o com urgência. Quando ambos não podiam mais suportar a distancia, uniram-se finalmente num corpo só, no mesmo ritmo alucinado. Amaram-se como homens, como bichos e como deuses, em compassos perdidos. Foram aos céus, deram-se estrelas de presente, acorrentaram suas almas, eram apenas um. E com um anúncio maravilhoso, a noite virou dia, o mundo explodiu em cores translúcidas, o desejo virou morte e ambos os corpos, em queda livre, deixaram-se repousar sobre os macios pelos de urso.

O silêncio montou guarda até o nascer do novo dia. E este chegou, trazendo na mala uma nova vida para o casal apaixonado, embora eles ainda não soubessem disso, mas se amariam profundamente e repetiriam aquela noite tantas vezes quantas fossem necessárias para construir uma história colorida, de paixão e cumplicidade, amizade e confiança, capaz de vencer lágrimas e transpor barreiras.

Lucille

Meu primeiro texto publicado de ficção.

Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Mas são pouquíssimas. A quem interessar possa, não, a personagem não é baseada na autora. Apenas um pedacinho da narração pertence a minha experiência.

Dedicado, com carinho, aos amigos-incentivadores destas loucuras pseudo-literárias.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Liberta DJ!

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhh!!!!

Meu grito de liberdade, misturado a saudade monumental de fazer isso. Enfrentar o branco do editor de texto, com os dedos engatilhados, a mente municiada, pronta pra atirar zilhões de palavras por minuto, transformando a silenciosa paz do mundo suburbano em uma deliciosa guerra de morte-ressureição zonasulense.

Cá estou, de volta, feliz por saber que a minha revelia coisas acontecem e que a revelia da vontade de outras pessoas, eu também faço coisas acontecerem.

Por onde começo? Não, errou quem disse “pelo início”. Bastante engraçado, sério, mas a coisa toda não tem início. São diversos meios sem fins. Fim, só com o descanso eterno.

A nova faculdade não é nada menos do que eu poderia esperar. Ainda sou Adm e desorganização me dá nos nervos. Claro que os atendentes, o pobre do Leonardo foi o primeiro, já tiveram que ouvir meus extensos escândalos de classe por telefone. Não, porque eu não xingo nem grito, mas sou mestre na arte de bradar a meia voz “eu sou o cliente, não estou pedindo favor”. Minha turma é divertidíssima, na última sexta-feira eu era a única heterossexual do grupo que xaropava após uma aula chaterrésima. Duas pessoas apareceram neste dia: o professor e eu. Ele deveria ter sido avisado, brincar comigo no fim do dia, fim da semana, com fome e na TPM, certamente não é um bom negócio. Pobrezinho. Tentou me deixar sem graça porque eu mexi na sacola plástica e fez barulho. A reação esperada seria um sorriso amarelo, mas eu não mexi meio músculo, olhei-o bem séria, com o neon a piscar na testa: idiota. Sem graça ficou ele ao me pedir desculpas, percebendo, assim como toda a turma, que ele deveria ter perdido a piada pra ganhar a amiga. E enfim, a semana passou bem, com uma dose cavalar de cansaço, porém plena de satisfação pela mudança.

Passei por experiências terríveis, outras normais, porém marcantes. Pensei muito antes de decidir contar isso aqui, mas acho que não haverá mal. Estou fazendo psicoterapia. Um dia desses, ao final de um relato, eu estava sentada na pontinha da cadeira, cerrando os punhos, tal e qual um bicho enfurecido de dor. Quando tudo acaba, minha vontade é sair dançando pelas ruas.

Após passar um glorioso sábado, sendo acompanhada de pertinho por um Sol de inverno incomum, tomei uma decisão importante. Por enquanto, ainda é segredo, talvez depois da terapia eu decida contar aqui. rs Fê, que já soube e é a única, achou o máximo. Não é que ela seja mais confiável ou só ela mereça saber. É que nesse assunto, ela é feita do mesmo pó que eu, por isso que nos apaixonamos perdidamente lá em... meu Deus! Tudo começou em 2002, no fotolog.

Aliás, por falar em Fernanda, esta semana ela jogou-me na cara algumas verdades que nem mesmo meu inimigo mais ferrenho teria tido coragem de dizer. “Ah, Lu, que legal, logo você que não tem cara de inteligente”. Hã???? Como assim?!?! Tenho cara de burra, então? Fiquei olhando aquele e-mail longamente, refletindo sobre o motivo que minha amiga teria tido para me açoitar daquela forma. E não parou por aí. Ao tentar me explicar, deixou-me ainda mais boquiaberta. “Quem vê você nas fotos, tão animada, saindo, não imagina que seja tão inteligente”. Entendi tudo naquele momento: tenho cara de mulher de pista, burra e provavelmente, fedorenta. Sim, o mundo estava desabando sobre mim. Minha amiga... Mas a coisa não terminou com a facada. Ainda tinha a espada do samurai. “Na verdade, você tem cara de...”. Recuso-me a reproduzir a palavra que, por enxergar, fui obrigada a ler e engolir com um gole d’água. Como ela pôde? Como? Perdida entre o atordoamento e a realidade, fechei o e-mail e fui-me embora, eu e minha cara nova. Nova porque eu não sabia que tinha. No dia seguinte, ela veio dizer que me amava, mas aí o mal já estava irreparavelmente feito. Estava até me acostumando com a perspectiva de carregar esta cara o resto da vida, ou plastificá-la, como Michael Jackson. (Será que MJ teve um amigo que lhe disse o mesmo?) Tenho que admitir que esta moça, residente naquele calor do semi-árido do centro do País, devia estar tomada por uma energia corajosa. Ou então, foi movida pela amizade de anos, guardada no fundo do peito, com a propriedade de quem já passou por tantas do meu lado – ainda que fisicamente longe – e nutre por mim um real e honesto amor.

(Mas deixa estar, mocréia, quando chegar aí te belisco!)

Muito melhor do que deixar alguém viver em paz, é dar a si mesmo esta liberdade. Caminhando pelas ruas de Ipanema, entendi que precisava disso, do grito de independência. Não fazia sentido viver numa gaiola suja e feia, quando eu tinha a porta aberta para voar por todo aquele belo mundo lá fora. Estou de pé, não caí e não pretendo parar a caminhada.

No Media Player: Speechless – Beyonce

Do tempo em que eu queria dar show. Entendi uma coisa: eu sou o show.

Maravilhoso fim de semana!

L.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Se...

... Deus me dissesse “Uma. Só uma. Darei a você uma única oportunidade de voltar no tempo, para alterar apenas um fato em sua vida.”, eu voltaria aos 18 anos, exatamente no mês de agosto, exatamente neste mês em que estamos. Voltaria e diria ao meu avô “pro inferno com suas regras tiranas pseudo-moralistas!”, diria ao velho Isaque quase o mesmo, acrescentaria um “faça como quiser, não morreremos por isso”, diria a minha mãe “eu confio em você, minha melhor amiga”, e por fim, diria a ele “tudo vai dar certo, confie em mim”.
L.

domingo, 3 de agosto de 2008

Um corte fino e certeiro

Sou sentimento. Sentimento aliado a ação. Mistura boa às vezes, em sua maioria. Mas nem sempre. Se sinto, vivo. Se vivo, sou feliz. Se estiver feliz, farei feliz. E quando faço feliz, sou imbatível.

Meu desejo de agradar por vezes supera o de ser agradada. Mas alto lá! Para chegar a este ponto, só com um amor muito profundo e generoso. Amor de mãe e afilhados, por hora, são os únicos com este poder. E quanto aos outros amores, que são tão eternos quanto efêmeros, são dependentes do meu estado de espírito e do segundo desejo.

Há mais ou menos 10 anos, talvez sejam exatos 10 anos, após uma pequena decepção, tomei a atitude que o sentimento positivo jamais deixaria fazer. Mas o negativo mandava. Passei todo o sábado esperando que ele fosse me ver, sem telefone, a única coisa que restava a fazer era esperar. Ele havia dito que iria pelo menos a noite. Mentalizei, forcei o pensamento, queria mais que tudo estar ao lado dele naquela noite fria da nova casa velha. Ele era meu elo com o mundo perdido da Monte Alegre. As 21h00min entendi que ele não iria mais. Triste, e mais uma vez me sentindo enganada e sozinha, silenciosamente levantei da cadeira, apanhei a tesoura e fui para o banheiro. A luz havia acabado, minha mãe dormia no quarto. Apenas sob a luz da vela e com a tesoura na mão, eu me olhava no espelho. O que havia de tão errado comigo? Não havia beleza suficiente? Não havia amor? O que mais teria que dar para receber só um pouco de respeito e atenção? De lado nenhum vinha resposta. Só silêncio e a bruxuleante luz da vela. E eu e a tesoura de ponta, nova e bem afiada, das costuras da minha mãe. O peito doía, os olhos estavam duros e fixos no reflexo no espelho, não haveria mais lágrimas aquela noite. Não haveria mais. Soltei o coque, penteei vagarosamente os compridos cabelos cacheados. Era uma das marcas registradas e preferida dele, os cachos que cascateavam pelos ombros indo parar no meio das costas. Em minutos, tudo estava muito feio. A dor pesava sobre mim como uma forma de dizer que estava tudo errado. Tudo. Mas a tesoura estava ali, única testemunha e cúmplice da insanidade que eu arquitetava amparada pelo sofrimento de alguns meses atrás, quando cometi a maior insanidade de todas dessa vida. Sem medo, sem auto-piedade, segurei os cabelos acima dos ombros como num rabo de cavalo. Fiquei receosa apenas de sujar muita coisa no banheiro. Mas tudo já estava feio e errado. Como eu podia servir pra ser exibida como um troféu aos amigos, mas não merecia sequer um abraço depois da exibição? Peguei a tesoura. Não doeu, não fez barulho. Não foi rápido. Uma teimosa lágrima escorreu. Em segundos o chão do banheiro escureceu, ficou tomado por algo que já não era mais parte de mim. Aos poucos ia escorrendo pelas costas, pelo vestido até acabar no chão frio e úmido. A cada nova investida da tesoura, era um momento de libertação, da figura que eu era para o mundo, mas não era para mim.

Passado tanto tempo, muitas coisas mudaram. Outras nem tanto. Ontem, a cena se repetiu. Há algumas semanas eu tentei, mas ele me impediu. Desta vez, não tinha ninguém que pudesse me segurar. Encontrei a tesoura, grande e bem afiada. Olhei-me no pequeno espelho do banheiro, algumas coisas estavam erradas, pensei, mas poderiam ser mudadas. E que era feio, poderia ficar belo. Tudo dependeria de mim dali para frente. Por acaso, também era um sábado à noite. Não estava esperando ninguém. Não sentia mais dor. Na verdade, a dor daquela época nunca cessou e nem nunca o fará, mas consigo conviver com ela e suas cruéis lembranças. E ali estava eu novamente, 10 anos depois, com a tesoura na mão. O cabelo não estava tão grande, não precisaria suspendê-lo muito. O dia havia sido bem complicado, mudança de remédio, o corpo estava reagindo mal a tudo. A pressão havia baixado mais cedo, muita tontura foi o que senti. Ficar sem tomá-lo poderia ser ainda pior. Somado a isso, um lamentável episódio havia me tirado o rumo e a sanidade temporariamente. Quando ele se foi e me deixou só, eu fiquei com todas as lágrimas que poderia depositar nas mãos. Comi como se não fizesse isso há dias. Tudo em mim estava momentaneamente descontrolado. Comi e bebi demasiadamente. Como eu sirvo pra ser esposa que lava, cozinha, gasta e ama, mas não posso ter minhas próprias vontades respeitadas? Nem meu amor e nem a minha existência. Desta vez tinha luz. Eu me via francamente ali de pé, com a tesoura na mão, tal e qual um anjo vingador. Eu era o meu anjo vingador, a minha própria justiceira. Com os cabelos bem afastados dos ombros, comecei o ritual. Eu sabia que aquilo não seria nada agradável para ele, mas era o que eu queria fazer. Ainda que estivesse com bastante medo, fui em frente, bem certa do que queria. E o que eu queria era finalizar bem aquilo tudo. Aos pouquinhos ela foi fazendo seu trabalho. Deixei que escorresse pelos ombros, era minha segunda libertação afinal. Um pouco mais demorada e mais cuidadosa e menos impiedosamente, o piso do box foi escurecendo e as formas no chão eram variadas, tamanhos, porém com a mesma cor escura e o mesmo cheiro bom e velho conhecido. Era o que eu queria fazer, era meu desejo, minha vontade.

Assim como da primeira vez, a sensação de poder e liberdade são indescritíveis. Agradar aos outros tem um preço, às vezes até muito caro quando o merecimento é nulo. Mas agradar-se é sobre-humanamente melhor.

Volto depois.

L.