quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dona Leoa

Em algum lugar dessa cidade é fim da madrugada do dia seis de fevereiro. No meu sono não tem hora nem dia, só cansaço e ansiedade; durmo tarde, acordo num sobressalto com o telefone tocando, não atendo e Ne-Yo me avisa que a pessoa insistente não vai desistir de ligar até conseguir falar comigo. Levanto para ir ao banheiro e ainda sonolenta mando uma mensagem de texto avisando que já sei o que se passa ao redor e estou dormindo. Tornei a deitar e lembrei que, sendo quem era, não iria se contentar com uma mensagem. Levantei novamente no mesmo pé e retornei a ligação.




— Oi, tá tudo bem aqui.
— Tá, eu tô subindo.
Despertei do sono.
— Subindo pra onde? Fica aí, aqui tá tudo calmo.
— Não, já tô na rua.
— Então volta pra lá!
— Teu irmão também tá sozinho em casa.
— Mas não tem ônibus! E além do mais eles estão aqui, não vão te deixar subir.
— Eu sei que eles estão aí: exército, aeronáutica, caveirão... Vou pegar qualquer coisa aqui e vou subir.
— Mas já tá aí, cara... Fica aí...
— Eu estou aqui, mas vocês estão aí!




Fiquei sem argumentos mais uma vez. Deixei que ela subisse porque eu já deveria ter entendido que quando é esse o assunto, não há nada no universo que a faça desistir.




O sono se foi de vez. Fui passar roupa, arrumar a casa, estender a roupa lavada. Liguei pra saber se ela já estava no meio das forças armadas que estavam tomando as favelas para instalação de UPP, pedindo pra passar.

— Tô no táxi, não tem ônibus.




Fiquei pensando o que aquela pessoa tinha feito pra conseguir que o taxista subisse quando nem os coletivos e nem nada mais estava subindo Santa Teresa...

Em menos de vinte minutos ela estava na minha porta. Eu sorri:

— Garota! Chegou ali e gritou “bota a cara!”, né? rs Não falei que estava tudo bem? Subiu pela escadaria? — fiquei mais aliviada que ela.
— Eles estão em todas as entradas. Um caveirão já foi rebocado. Tem café aí? — eu ri daquela criaturinha branca, chegando na minha casa as oito horas de um domingo, tensa e extremamente preocupada, mas fazendo cara de “visita de rotina”.






Fiquei imaginando como ela deve ter olhado pro taxista com uma cara de súplica monumental e dito a ele que precisava subir com urgência, pois havia deixado os filhos em casa. Claro, senhora, vou sim.

— Falou o que pro taxista?
— Nada, só pedi pra ele me deixar em Santa Teresa até onde desse pra chegar. — o restante do caminho, tenho certeza, ela teria feito a pé.




Ela tomou café, se certificou que estava tudo realmente bem, falou que era dia de praia e continuou a subida: ainda tinha um filho pra olhar.




Sorri enquanto ela subia, pensando que existem certas coisas na vida que não têm qualquer explicação exata: só se pode entender quando se está vivendo a situação na pele. Se não tivesse táxi, ela teria subido a pé, mesmo estando muito cansada por ter trabalhado a semana toda, inclusive o dia anterior. Se tivesse barreira policial, ela teria implorado pra passar, afinal ela tinha deixado os filhos em casa, nesse perigo. E se o policial perguntasse sobre os filhos, provavelmente não entenderia porque aquela mulher tinha tanta urgência em passar para ver uma mulher e um homem, de trinta e vinte e cinco anos, respectivamente, que dormiam em casa tranquilamente, sob o vento forte do ventilador. É, ninguém entenderia, a menos que já tivesse sentido a dor do parto e experimentado o amor mais profundo e incondicional que um ser humano pode sentir por outro.
Pensei: ser alvo desse amor é a maior bênção que uma pessoa pode ter.




E ela subiu, capa azul e vermelha nas costas, cabelinho 2011 curto com uma singela fivela do lado, e a determinação protetora que só as verdadeiras mães têm.






L.






Originalmente escrito em 06 de fevereiro de 2011.