domingo, 3 de agosto de 2008

Um corte fino e certeiro

Sou sentimento. Sentimento aliado a ação. Mistura boa às vezes, em sua maioria. Mas nem sempre. Se sinto, vivo. Se vivo, sou feliz. Se estiver feliz, farei feliz. E quando faço feliz, sou imbatível.

Meu desejo de agradar por vezes supera o de ser agradada. Mas alto lá! Para chegar a este ponto, só com um amor muito profundo e generoso. Amor de mãe e afilhados, por hora, são os únicos com este poder. E quanto aos outros amores, que são tão eternos quanto efêmeros, são dependentes do meu estado de espírito e do segundo desejo.

Há mais ou menos 10 anos, talvez sejam exatos 10 anos, após uma pequena decepção, tomei a atitude que o sentimento positivo jamais deixaria fazer. Mas o negativo mandava. Passei todo o sábado esperando que ele fosse me ver, sem telefone, a única coisa que restava a fazer era esperar. Ele havia dito que iria pelo menos a noite. Mentalizei, forcei o pensamento, queria mais que tudo estar ao lado dele naquela noite fria da nova casa velha. Ele era meu elo com o mundo perdido da Monte Alegre. As 21h00min entendi que ele não iria mais. Triste, e mais uma vez me sentindo enganada e sozinha, silenciosamente levantei da cadeira, apanhei a tesoura e fui para o banheiro. A luz havia acabado, minha mãe dormia no quarto. Apenas sob a luz da vela e com a tesoura na mão, eu me olhava no espelho. O que havia de tão errado comigo? Não havia beleza suficiente? Não havia amor? O que mais teria que dar para receber só um pouco de respeito e atenção? De lado nenhum vinha resposta. Só silêncio e a bruxuleante luz da vela. E eu e a tesoura de ponta, nova e bem afiada, das costuras da minha mãe. O peito doía, os olhos estavam duros e fixos no reflexo no espelho, não haveria mais lágrimas aquela noite. Não haveria mais. Soltei o coque, penteei vagarosamente os compridos cabelos cacheados. Era uma das marcas registradas e preferida dele, os cachos que cascateavam pelos ombros indo parar no meio das costas. Em minutos, tudo estava muito feio. A dor pesava sobre mim como uma forma de dizer que estava tudo errado. Tudo. Mas a tesoura estava ali, única testemunha e cúmplice da insanidade que eu arquitetava amparada pelo sofrimento de alguns meses atrás, quando cometi a maior insanidade de todas dessa vida. Sem medo, sem auto-piedade, segurei os cabelos acima dos ombros como num rabo de cavalo. Fiquei receosa apenas de sujar muita coisa no banheiro. Mas tudo já estava feio e errado. Como eu podia servir pra ser exibida como um troféu aos amigos, mas não merecia sequer um abraço depois da exibição? Peguei a tesoura. Não doeu, não fez barulho. Não foi rápido. Uma teimosa lágrima escorreu. Em segundos o chão do banheiro escureceu, ficou tomado por algo que já não era mais parte de mim. Aos poucos ia escorrendo pelas costas, pelo vestido até acabar no chão frio e úmido. A cada nova investida da tesoura, era um momento de libertação, da figura que eu era para o mundo, mas não era para mim.

Passado tanto tempo, muitas coisas mudaram. Outras nem tanto. Ontem, a cena se repetiu. Há algumas semanas eu tentei, mas ele me impediu. Desta vez, não tinha ninguém que pudesse me segurar. Encontrei a tesoura, grande e bem afiada. Olhei-me no pequeno espelho do banheiro, algumas coisas estavam erradas, pensei, mas poderiam ser mudadas. E que era feio, poderia ficar belo. Tudo dependeria de mim dali para frente. Por acaso, também era um sábado à noite. Não estava esperando ninguém. Não sentia mais dor. Na verdade, a dor daquela época nunca cessou e nem nunca o fará, mas consigo conviver com ela e suas cruéis lembranças. E ali estava eu novamente, 10 anos depois, com a tesoura na mão. O cabelo não estava tão grande, não precisaria suspendê-lo muito. O dia havia sido bem complicado, mudança de remédio, o corpo estava reagindo mal a tudo. A pressão havia baixado mais cedo, muita tontura foi o que senti. Ficar sem tomá-lo poderia ser ainda pior. Somado a isso, um lamentável episódio havia me tirado o rumo e a sanidade temporariamente. Quando ele se foi e me deixou só, eu fiquei com todas as lágrimas que poderia depositar nas mãos. Comi como se não fizesse isso há dias. Tudo em mim estava momentaneamente descontrolado. Comi e bebi demasiadamente. Como eu sirvo pra ser esposa que lava, cozinha, gasta e ama, mas não posso ter minhas próprias vontades respeitadas? Nem meu amor e nem a minha existência. Desta vez tinha luz. Eu me via francamente ali de pé, com a tesoura na mão, tal e qual um anjo vingador. Eu era o meu anjo vingador, a minha própria justiceira. Com os cabelos bem afastados dos ombros, comecei o ritual. Eu sabia que aquilo não seria nada agradável para ele, mas era o que eu queria fazer. Ainda que estivesse com bastante medo, fui em frente, bem certa do que queria. E o que eu queria era finalizar bem aquilo tudo. Aos pouquinhos ela foi fazendo seu trabalho. Deixei que escorresse pelos ombros, era minha segunda libertação afinal. Um pouco mais demorada e mais cuidadosa e menos impiedosamente, o piso do box foi escurecendo e as formas no chão eram variadas, tamanhos, porém com a mesma cor escura e o mesmo cheiro bom e velho conhecido. Era o que eu queria fazer, era meu desejo, minha vontade.

Assim como da primeira vez, a sensação de poder e liberdade são indescritíveis. Agradar aos outros tem um preço, às vezes até muito caro quando o merecimento é nulo. Mas agradar-se é sobre-humanamente melhor.

Volto depois.

L.

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