O tempo passa, passa, corrre... E
parece que está sempre ali, espreitando com alguma surpresa nos olhos, pronto a
lançar uma dor que somente ele poderá curar ou uma felicidade tão efêmera
quanto ele mesmo. O tempo só tem um grande “inimigo”...
Quanto tempo que não sinto assim,
que não penso assim. Escrever sempre foi uma das minhas grandes paixões — e ainda é —, mas conhecer verdadeiramente o fundo do poço
emocional do ser humano e logo em seguida voltar, me fez deixar o bom e velho
prazer de lado. Tão de lado que nem imaginava que seria capaz novamente.
O início do ano de 2015 foi
espetacular! Mentira. Estar casada era dar à sociedade a justificativa de que
precisava para acabar com a perturbação sobre casamento e filhos, já que eu “só
estudava”. Irônico. Tivesse eu vivido em função de homens e filhos seria
igualmente julgada, como me dediquei a estudar ser profissional... Bom,
insatisfação é característica do ser humano, especialmente com a vida alheia.
Virar o ano casada e firme no propósito de engravidar, já que finalmente havia
me “acertado” com o homem que amava havia quase 10 anos, foi a melhor coisa que
poderia ter acontecido. Para o público. Para mim, significava cuidar do filho
barbado de outra mulher, e, sucessivamente, enfrentar diversos insucessos na
tentativa de ser mãe. Do meu próprio filho.
Na sequência, perder os dois avôs e
em seguida o emprego. A primeira perda me colocou na borda do poço, a segunda
já me ajudou a ficar mais distante. Trabalho pra mim é sagrado e estar onde meu
trabalho vale menos que o chão que eu piso, era o verdadeiro sofrimento. Em
casa, pensei, as coisas hão de melhorar. Enganada estava. A depressão que não
era minha também habitava lá.
A infertilidade estava em mim,
constatou o exame. Meu marido saiu de casa babando como cão raivoso, essas
palavras lhe saindo da boca como que balas do revólver. E me acertaram. Não
haveria mais marido, nem filhos. Nem com ele e nem com ninguém. Fiquei ali na
borda do poço, me segurando com as pontinhas das unhas pra não cair.
Lidar com um depressivo não é fácil,
tampouco é sair ilesa disso. A médica confirmou a sentença dos exames: sem
filhos naturais. E logo veio o diagnóstico: eu também tinha meu black dog.
Senti as costas batendo no chão
gelado do poço mais fundo que já caí na vida.
Havia duas possibilidades: ficar
ali deitada, olhando o nada, vivendo o nada, até que tudo acabasse, ou lutar de
alguma forma, mesmo que isso significasse ser derrotada no final também.
Escolhi a primeira. Perdi até Deus de vista. O nada me acompanhava dia após
dia.
Dei a sorte de também ter pessoas
que me amam. Olhava as fotos de meus avôs penduradas na parede, algo me dizia
que eu devia a eles uma resposta. Busquei ajuda, pedi socorro, iniciei o
tratamento e fazia parte dele sair ao menos uma vez por semana. Vontade zero,
mas me obriguei.
No início eram noites ótimas, mas
que se tornavam nada novamente quando encontrava o black dog me aguardando em
casa. Então veio a medicação e daí me cresceram as unhas: a única coisa que eu
tinha pra me apoiar para sair do poço. E dia a dia fincava nas pedras
escorregadias minhas unhas fortificadas com fé, com amor, com esperança. E
sabia que haveria alguém me esperando lá fora. Foram meses de escalada, nenhuma
vontade de desistir, mas sem pressa.
Um trabalho novo, mil
possibilidades e o mais importante: respeito a mim como pessoa e profissional.
Tudo haveria de melhorar, eu pensei. Fosse como fosse, não me permitiria mais
ser subjugada por nada e nem ninguém.
Numa dessas noites de quinta o
conheci. Ou melhor, fomos reapresentados. Um rosto familiar do passado, Negros
RJ. Há quantos anos? Mais de 10, certamente. Fui educada apenas, homens não
passavam pela minha cabeça no momento em que a coisa mais importante da minha
vida era eu mesma. Já que não poderia ter meus filhos naturais, não criaria
mais o filho barbado de ninguém! Ele, determinado, aguardou na disciplina
característica de sua profissão até que eu dissesse sim. Depois de dois nãos.
Depois de muitos nãos na minha cabeça, o “que mal tem?” venceu. Praia do Leme,
noite úmida de domingo, ouvi atenta a sua história de superação, de como foi
preterido duas vezes e por três vezes tentou até conseguir passar na prova que
o levara até seu cargo atual. No meio de tantas lembranças, ele se emocionou.
Ouvir sempre foi meu forte e talvez ele precisasse daquele desabafo, porque ser
forte 24 horas é o que esperam de nós e assim nos fazemos, mas muitas vezes só
precisamos sentar no meio-fio e admitir a fraqueza, deixar alguém dar a mão e
algum conforto. Quando o deixei falar sobre as provas e as negativas (como deve
ser admitir duas derrotas), creio que ali tenha nascido nosso laço de
admiração. Ele por saber do meu momento e tentar me ajudar com o que podia e eu
por saber que ele também não havia se permitido abater.
Foi uma garrafa de vinho. Na saída do restaurante um
passeio na praia naquele início de madrugada. E risos e bem-estar. Foram dias
muito bacanas. “Vamos tomar um sorvete depois do trabalho?” E quando eu via, o
sorvete que era na esquina de casa, surgia num restaurante na Praia da Reserva.
Vento frio vindo do mar batendo contra minhas coxas mal cobertas pelo short
jeans. Em cima fazia calor: um abraço carinhoso me cobria o corpo e a alma.
Apesar de tanta presença, a minha sagrada quinta-feira continuava sendo só
minha, com música, amigos, charme, passinhos, Ice e uma noite feliz no coração.
Então era assim estar com uma pessoa que confiava no próprio taco e não tinha
medo de ser trocado por qualquer um que me dissesse oi... E ainda passava pra
me buscar.
Nada, absolutamente nada acontecia
sem meu expresso consentimento. Mentira, ele sabia ler o sim nos meus olhos, no
meu corpo, mesmo que dos meus lábios saísse o mais prático “não sei”. De modo
que meu consentimento era dado, ainda que eu não dissesse. Eu escolhia pouca
coisa, bem pouca mesmo. Mulher independente e que se banca que sempre fui,
sentia quase necessidade de alguém que tomasse as rédeas de coisas simples, do
tipo: onde ir na sexta, qual restaurante, que horas sair. A mim cabia a tarefa
de passar uma manhã no salão me sentindo linda e radiante, feliz por mim mesma,
pertencendo a uma única pessoa no mundo: eu. Ele entendia e me dizia: “sou
feminista”.
O último resquício da depressão
morava ainda no campo profissional. Sentia-me tão incapaz, enganadora até. Tudo
que havia estudado por anos foi reduzido a “não sei de nada, o que estou
fazendo aqui?”. Essa era a parte inconfessável. Até que um dia fui convocada
para a reunião de coordenadores com diretoria. Dizia o e-mail “teremos a
participação especial do diretor financeiro e de Lucille Nascimento,
responsável pelo departamento pessoal para sanar dúvidas”. Todos sabedores de
muita coisa e eu de nada. Minha diretoria me apresentou como “especialista”, e
eu quis que a terra se abrisse sob meus pés naquele momento. Que vontade de
dizer “não minta pra eles, Ana, eu não sou nada disso!”. Embora o diploma de
pós-graduação corrobore essa informação, eu não me sentia nem estagiária, que
dirá especialista. Queria desmaiar naquela sala. Mesa redonda, todos de olho em
mim. Minha gerente, minha diretoria completa. Que sensação de ser intrusa! Instintivamente
joguei minha cadeira para trás, numa tentativa idiota de não ser notada, de não
lembrarem da minha existência ali. Em vão. As perguntas começaram, inicialmente
para meus diretores, até que um espírito de porco achou de fazer graça e provar
pra todos que eu era uma farsa. Lançou a pergunta, eu limpei o suor
mentalmente, pois não tinha coragem de mover as mãos em direção a testa e...
respondi. Naturalmente, como quem diz onde fica o endereço que o passante na
rua está procurando. Pensei: essa era mole também. Na segunda pergunta, já mais
cabeluda, pois envolvia legislação e isso eu tinha certeza que não saberia,
aconteceu o inesperado. As luzes diminuíram e de repente eu estava sozinha na
sala, falando e falando, desenrolando a legislação que tratava do afastamento,
falando e explicando, dando base legal e entendimento prático. Quando acabei,
meu diretor de operações se ajeitava na cadeira de modo a me ver melhor como
quem presta atenção na melhor cena do filme e disse: “pode repetir tudo isso,
só que mais devagar?”. Risos na sala, eu mesma sorri sem graça diante daquele
jeito incomum de me elogiar o conhecimento. Depois dessa, ninguém mais tinha
perguntas. Como assim? Venham todos! Perguntem! Eu sei TUDO!!! Queria berrar,
naquele momento minha autoconfiança voltava a correr nas veias como se eu
estivesse voltando de um quase afogamento. A pauta da reunião foi retomada e lá
estava eu com as respostas para as dúvidas que surgiam do nada e não faziam
parte da pauta. Meu Deus, pensei: eu sei, sempre soube. Eu sou profissional,
sim!
Saí da reunião naquela quinta-feira
pisando em nuvens, extremamente feliz, com poder, com razão, com força da raiz
dos cabelos até a unha do pé.
Nesse dia além de tudo, era
aniversário de meu amado amigo. Eu também estava feliz pela felicidade dele,
que um ano atrás estava mergulhado em tristeza profunda. Eu voltando naquele
dia a ser Lucille Nascimento e ele bem outra vez: não cabia em mim de
felicidade.
Fomos todos ao baile nesse dia, eu
porque iria mesmo, mas queria que todos fossem, inclusive quem me sugeria parar
o remédio que, naquele dia, não tomei mesmo. Cheguei primeiro, recebi das mãos
do meu querido garçom a primeira garrafa de Ice gelada. Brindei comigo em
silêncio: ao meu retorno! Em seguida ele chegou, alto, cheiroso até não poder
mais, me beijou o rosto e voltou para seu grupo de amigos, me deixando com os
meus até que eu sentisse vontade de misturar tudo. Coisa boa quando o outro
respeita teu espaço... Logo fui atrás dele, me enfiar naquele abraço bom de se
perder por tempo indeterminado. Pensei enquanto olhava firme nos olhos dele:
não mudou minha vida, mas como me ajudou a fazer isso. E ele me perguntou o que
eu tinha, disse que nada, embora ele já soubesse que havia mais por trás daquele
nada. Ele sempre sabia. Sem que me perguntasse em voz alta, mas com o olhar,
respondi: estou feliz, muito feliz. Ele aquiesceu, sabendo que não era momento
de explicações. Perguntei que horas iríamos embora (foi aí que entreguei o ouro
ao bandido) e ele respondeu: “quando você quiser”. Bebi mais uma Ice, comemorei
o aniversário do amigo, gargalhei tanto, dancei mais ainda e, já satisfeita, decidi
que não queria mais adiar. Hora de ir.
Saímos de lá rumo a minha casa,
não o portão onde ele sempre me deixava, mas o interior dela. Lá eu tirei o
salto e desandei a falar. Falei como se nunca mais fosse fazer isso outra vez.
Contei como havia sido a reunião, como havia deixado meu diretor, como aquilo
havia me feito feliz, falei, falei e falei. E ele me ouvia atentamente, ora
sério e ora sorrindo das minhas maluquices. Enrolada na toalha, eu ia até o
corredor em direção ao banheiro e voltava pra dizer: sou foda, sei a porra
toda, estudei pra isso! Levemente alta pela Ice e completamente embriagada pela
felicidade. Tanta coisa indo embora naquela água do banho... E com a água que
caía do chuveiro, outras coisas maravilhosas vinham. Saí do banho com mais
assunto. Falamos, falamos e falamos até que como, eu não sei, eu não me pertencia
mais: era dele. Ele me devolveu a mim, bem como me entregou também tantas
flores e poesias e palavras sujas e toda sorte de devassidão que eu queria
ouvir. (Há quantos anos?, pensei. Desde a Era Transformers, concluí, nada havia
sido daquela forma).
O que eu nem sonhava era o quanto
ele transformaria minha vida. Um dia me perguntou por que, se já me sentia bem,
não parava com o antidepressivo. Respondi que não me sentia segura ainda, mas
fui “esquecendo” de tomar de vez em quando. Até que chegou o dia que tive mesmo
que parar, obrigatoriamente. E nesse dia, quando olhei para trás, estava longe
demais do poço, pisando em nuvens, segurando firme nas mãos de Deus novamente.
O Deus do Impossível finalmente se
apresentava a mim: minha filha, não sou apenas amor, sou justiça e o tempo
cumpre minhas ordens.
Nunca ousei duvidar, agora mais
que nunca, sou testemunha viva desse poder.
Continua.
LN
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