domingo, 7 de junho de 2015

Do tempo e do poder de Deus

O tempo passa, passa, corrre... E parece que está sempre ali, espreitando com alguma surpresa nos olhos, pronto a lançar uma dor que somente ele poderá curar ou uma felicidade tão efêmera quanto ele mesmo. O tempo só tem um grande “inimigo”... 

Quanto tempo que não sinto assim, que não penso assim. Escrever sempre foi uma das minhas grandes paixões e ainda é —, mas conhecer verdadeiramente o fundo do poço emocional do ser humano e logo em seguida voltar, me fez deixar o bom e velho prazer de lado. Tão de lado que nem imaginava que seria capaz novamente.

O início do ano de 2015 foi espetacular! Mentira. Estar casada era dar à sociedade a justificativa de que precisava para acabar com a perturbação sobre casamento e filhos, já que eu “só estudava”. Irônico. Tivesse eu vivido em função de homens e filhos seria igualmente julgada, como me dediquei a estudar ser profissional... Bom, insatisfação é característica do ser humano, especialmente com a vida alheia. Virar o ano casada e firme no propósito de engravidar, já que finalmente havia me “acertado” com o homem que amava havia quase 10 anos, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Para o público. Para mim, significava cuidar do filho barbado de outra mulher, e, sucessivamente, enfrentar diversos insucessos na tentativa de ser mãe. Do meu próprio filho.

Na sequência, perder os dois avôs e em seguida o emprego. A primeira perda me colocou na borda do poço, a segunda já me ajudou a ficar mais distante. Trabalho pra mim é sagrado e estar onde meu trabalho vale menos que o chão que eu piso, era o verdadeiro sofrimento. Em casa, pensei, as coisas hão de melhorar. Enganada estava. A depressão que não era minha também habitava lá.

A infertilidade estava em mim, constatou o exame. Meu marido saiu de casa babando como cão raivoso, essas palavras lhe saindo da boca como que balas do revólver. E me acertaram. Não haveria mais marido, nem filhos. Nem com ele e nem com ninguém. Fiquei ali na borda do poço, me segurando com as pontinhas das unhas pra não cair.
Lidar com um depressivo não é fácil, tampouco é sair ilesa disso. A médica confirmou a sentença dos exames: sem filhos naturais. E logo veio o diagnóstico: eu também tinha meu black dog.
Senti as costas batendo no chão gelado do poço mais fundo que já caí na vida.
Havia duas possibilidades: ficar ali deitada, olhando o nada, vivendo o nada, até que tudo acabasse, ou lutar de alguma forma, mesmo que isso significasse ser derrotada no final também. Escolhi a primeira. Perdi até Deus de vista. O nada me acompanhava dia após dia.
Dei a sorte de também ter pessoas que me amam. Olhava as fotos de meus avôs penduradas na parede, algo me dizia que eu devia a eles uma resposta. Busquei ajuda, pedi socorro, iniciei o tratamento e fazia parte dele sair ao menos uma vez por semana. Vontade zero, mas me obriguei.
No início eram noites ótimas, mas que se tornavam nada novamente quando encontrava o black dog me aguardando em casa. Então veio a medicação e daí me cresceram as unhas: a única coisa que eu tinha pra me apoiar para sair do poço. E dia a dia fincava nas pedras escorregadias minhas unhas fortificadas com fé, com amor, com esperança. E sabia que haveria alguém me esperando lá fora. Foram meses de escalada, nenhuma vontade de desistir, mas sem pressa.

Um trabalho novo, mil possibilidades e o mais importante: respeito a mim como pessoa e profissional. Tudo haveria de melhorar, eu pensei. Fosse como fosse, não me permitiria mais ser subjugada por nada e nem ninguém.

Numa dessas noites de quinta o conheci. Ou melhor, fomos reapresentados. Um rosto familiar do passado, Negros RJ. Há quantos anos? Mais de 10, certamente. Fui educada apenas, homens não passavam pela minha cabeça no momento em que a coisa mais importante da minha vida era eu mesma. Já que não poderia ter meus filhos naturais, não criaria mais o filho barbado de ninguém! Ele, determinado, aguardou na disciplina característica de sua profissão até que eu dissesse sim. Depois de dois nãos. Depois de muitos nãos na minha cabeça, o “que mal tem?” venceu. Praia do Leme, noite úmida de domingo, ouvi atenta a sua história de superação, de como foi preterido duas vezes e por três vezes tentou até conseguir passar na prova que o levara até seu cargo atual. No meio de tantas lembranças, ele se emocionou. Ouvir sempre foi meu forte e talvez ele precisasse daquele desabafo, porque ser forte 24 horas é o que esperam de nós e assim nos fazemos, mas muitas vezes só precisamos sentar no meio-fio e admitir a fraqueza, deixar alguém dar a mão e algum conforto. Quando o deixei falar sobre as provas e as negativas (como deve ser admitir duas derrotas), creio que ali tenha nascido nosso laço de admiração. Ele por saber do meu momento e tentar me ajudar com o que podia e eu por saber que ele também não havia se permitido abater.

Foi uma garrafa de vinho. Na saída do restaurante um passeio na praia naquele início de madrugada. E risos e bem-estar. Foram dias muito bacanas. “Vamos tomar um sorvete depois do trabalho?” E quando eu via, o sorvete que era na esquina de casa, surgia num restaurante na Praia da Reserva. Vento frio vindo do mar batendo contra minhas coxas mal cobertas pelo short jeans. Em cima fazia calor: um abraço carinhoso me cobria o corpo e a alma. Apesar de tanta presença, a minha sagrada quinta-feira continuava sendo só minha, com música, amigos, charme, passinhos, Ice e uma noite feliz no coração. Então era assim estar com uma pessoa que confiava no próprio taco e não tinha medo de ser trocado por qualquer um que me dissesse oi... E ainda passava pra me buscar.

Nada, absolutamente nada acontecia sem meu expresso consentimento. Mentira, ele sabia ler o sim nos meus olhos, no meu corpo, mesmo que dos meus lábios saísse o mais prático “não sei”. De modo que meu consentimento era dado, ainda que eu não dissesse. Eu escolhia pouca coisa, bem pouca mesmo. Mulher independente e que se banca que sempre fui, sentia quase necessidade de alguém que tomasse as rédeas de coisas simples, do tipo: onde ir na sexta, qual restaurante, que horas sair. A mim cabia a tarefa de passar uma manhã no salão me sentindo linda e radiante, feliz por mim mesma, pertencendo a uma única pessoa no mundo: eu. Ele entendia e me dizia: “sou feminista”.

O último resquício da depressão morava ainda no campo profissional. Sentia-me tão incapaz, enganadora até. Tudo que havia estudado por anos foi reduzido a “não sei de nada, o que estou fazendo aqui?”. Essa era a parte inconfessável. Até que um dia fui convocada para a reunião de coordenadores com diretoria. Dizia o e-mail “teremos a participação especial do diretor financeiro e de Lucille Nascimento, responsável pelo departamento pessoal para sanar dúvidas”. Todos sabedores de muita coisa e eu de nada. Minha diretoria me apresentou como “especialista”, e eu quis que a terra se abrisse sob meus pés naquele momento. Que vontade de dizer “não minta pra eles, Ana, eu não sou nada disso!”. Embora o diploma de pós-graduação corrobore essa informação, eu não me sentia nem estagiária, que dirá especialista. Queria desmaiar naquela sala. Mesa redonda, todos de olho em mim. Minha gerente, minha diretoria completa. Que sensação de ser intrusa! Instintivamente joguei minha cadeira para trás, numa tentativa idiota de não ser notada, de não lembrarem da minha existência ali. Em vão. As perguntas começaram, inicialmente para meus diretores, até que um espírito de porco achou de fazer graça e provar pra todos que eu era uma farsa. Lançou a pergunta, eu limpei o suor mentalmente, pois não tinha coragem de mover as mãos em direção a testa e... respondi. Naturalmente, como quem diz onde fica o endereço que o passante na rua está procurando. Pensei: essa era mole também. Na segunda pergunta, já mais cabeluda, pois envolvia legislação e isso eu tinha certeza que não saberia, aconteceu o inesperado. As luzes diminuíram e de repente eu estava sozinha na sala, falando e falando, desenrolando a legislação que tratava do afastamento, falando e explicando, dando base legal e entendimento prático. Quando acabei, meu diretor de operações se ajeitava na cadeira de modo a me ver melhor como quem presta atenção na melhor cena do filme e disse: “pode repetir tudo isso, só que mais devagar?”. Risos na sala, eu mesma sorri sem graça diante daquele jeito incomum de me elogiar o conhecimento. Depois dessa, ninguém mais tinha perguntas. Como assim? Venham todos! Perguntem! Eu sei TUDO!!! Queria berrar, naquele momento minha autoconfiança voltava a correr nas veias como se eu estivesse voltando de um quase afogamento. A pauta da reunião foi retomada e lá estava eu com as respostas para as dúvidas que surgiam do nada e não faziam parte da pauta. Meu Deus, pensei: eu sei, sempre soube. Eu sou profissional, sim!
Saí da reunião naquela quinta-feira pisando em nuvens, extremamente feliz, com poder, com razão, com força da raiz dos cabelos até a unha do pé.

Nesse dia além de tudo, era aniversário de meu amado amigo. Eu também estava feliz pela felicidade dele, que um ano atrás estava mergulhado em tristeza profunda. Eu voltando naquele dia a ser Lucille Nascimento e ele bem outra vez: não cabia em mim de felicidade.

Fomos todos ao baile nesse dia, eu porque iria mesmo, mas queria que todos fossem, inclusive quem me sugeria parar o remédio que, naquele dia, não tomei mesmo. Cheguei primeiro, recebi das mãos do meu querido garçom a primeira garrafa de Ice gelada. Brindei comigo em silêncio: ao meu retorno! Em seguida ele chegou, alto, cheiroso até não poder mais, me beijou o rosto e voltou para seu grupo de amigos, me deixando com os meus até que eu sentisse vontade de misturar tudo. Coisa boa quando o outro respeita teu espaço... Logo fui atrás dele, me enfiar naquele abraço bom de se perder por tempo indeterminado. Pensei enquanto olhava firme nos olhos dele: não mudou minha vida, mas como me ajudou a fazer isso. E ele me perguntou o que eu tinha, disse que nada, embora ele já soubesse que havia mais por trás daquele nada. Ele sempre sabia. Sem que me perguntasse em voz alta, mas com o olhar, respondi: estou feliz, muito feliz. Ele aquiesceu, sabendo que não era momento de explicações. Perguntei que horas iríamos embora (foi aí que entreguei o ouro ao bandido) e ele respondeu: “quando você quiser”. Bebi mais uma Ice, comemorei o aniversário do amigo, gargalhei tanto, dancei mais ainda e, já satisfeita, decidi que não queria mais adiar. Hora de ir.

Saímos de lá rumo a minha casa, não o portão onde ele sempre me deixava, mas o interior dela. Lá eu tirei o salto e desandei a falar. Falei como se nunca mais fosse fazer isso outra vez. Contei como havia sido a reunião, como havia deixado meu diretor, como aquilo havia me feito feliz, falei, falei e falei. E ele me ouvia atentamente, ora sério e ora sorrindo das minhas maluquices. Enrolada na toalha, eu ia até o corredor em direção ao banheiro e voltava pra dizer: sou foda, sei a porra toda, estudei pra isso! Levemente alta pela Ice e completamente embriagada pela felicidade. Tanta coisa indo embora naquela água do banho... E com a água que caía do chuveiro, outras coisas maravilhosas vinham. Saí do banho com mais assunto. Falamos, falamos e falamos até que como, eu não sei, eu não me pertencia mais: era dele. Ele me devolveu a mim, bem como me entregou também tantas flores e poesias e palavras sujas e toda sorte de devassidão que eu queria ouvir. (Há quantos anos?, pensei. Desde a Era Transformers, concluí, nada havia sido daquela forma).

O que eu nem sonhava era o quanto ele transformaria minha vida. Um dia me perguntou por que, se já me sentia bem, não parava com o antidepressivo. Respondi que não me sentia segura ainda, mas fui “esquecendo” de tomar de vez em quando. Até que chegou o dia que tive mesmo que parar, obrigatoriamente. E nesse dia, quando olhei para trás, estava longe demais do poço, pisando em nuvens, segurando firme nas mãos de Deus novamente.

O Deus do Impossível finalmente se apresentava a mim: minha filha, não sou apenas amor, sou justiça e o tempo cumpre minhas ordens.

Nunca ousei duvidar, agora mais que nunca, sou testemunha viva desse poder.


Continua.

LN

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