Aos poucos tudo vai ocupando seu
devido lugar. Não há razão em se ter pressa, nem de cantar derrota: muitas
vezes o fim de um ciclo representa tão somente o início de uma nova jornada.
A gente passa a vida em busca de
coisas, de pessoas perfeitas, ou que ao menos se encaixem. Até que a maturidade
ensina que não existem tais coisas: elas se moldam ao nosso estilo de vida. Ou
não. Nada vem pronto e acabado: nem o grande amor, nem o filho, nem o emprego,
nem a casa. O que vem a gente molda pra gente e se molda pra eles. Quando não
dá certo é porque, simplesmente, não era pra ser daquela forma.
Hoje entendo perfeitamente isso.
Hoje sei que tudo o que aconteceu até esse momento, tudo o que não deu certo,
não era mesmo para dar. Mas não ignoro e tampouco rejeito: foi necessário que
assim fosse para que eu entendesse certas coisas, para que pudesse ver que a
vida corre para o lado que o rio quer, não o contrário.
Deitar com uma faca na cabeceira
por “medo” de um suposto ataque que certamente nunca aconteceria, não foi nada
agradável, mas foi a fase, agora vejo, que me possibilitou conhecer a mim mesma
mais que em outros momentos de felicidade. De senhora da minha emoção, me
tornei escrava dela. E por sorte havia ajuda pra sair dessa. Não apenas ajuda
profissional ou de amigos, apesar de terem sido fundamentais. Havia também um
homem, alguém que tão sem querer quanto entrou, virou do avesso tudo que eu
conhecia por vida.
“Deus dá grandes batalhas aos seus
melhores soldados.” Embora ele estivesse muitas graduações acima de soldado,
não sabia a batalha que o aguardava. Nem eu.
Anos e anos passados nos
conhecemos em um dos encontros promovidos pelo grupo do Orkut da comunidade
Negros RJ. Foi um breve oi e tchau, apenas para constar. Ele, casado. Eu,
solteira e curtindo a vida. Neste ano nos reencontramos com o mesmo por acaso
daquela época, apresentados pelo primo dele. Eu, recém-separada. Ele divorciado
já alguns anos. Era mais uma noite de música, Ice, amigos, mais uma noite de
“terapia”. Fui ao banheiro, movendo o corpo preguiçosamente pelo salão, cabelos
cheios, salto alto, saia justa na altura do joelho (porque pra ser sexy não
precisa estar nua) e nariz em pé com aquele velho e conhecido ar de “não sou
pro seu bico”. Só os fortes se atrevem a chegar numa mulher assim. Já havia
percebido isso há anos, mas por algum motivo que desconheço, em algum momento
da vida curvei os ombros para frente como se a submissão fosse mais atraente.
Não é. Qualquer imbecil chega numa mulher que não precise enfrentar. Aquelas
com cara de touro brabo, só os que confiam muito no próprio taco chegam.
Então senti uma mão me parando,
era o primo dele, por acaso nosso amigo em comum. Na semi-escuridão nos
apresentou. Eu, fazendo a gentil e ele distribuindo panfletos do seu evento na
próxima semana. Ele me reconheceu, se lembrava de mim, eu não. “Me dá seu
telefone, quando tiver outras boas eu te mando mensagem”. Lá vem mais um
divulgador... Chatice!, pensei silenciosamente. Mas, enfim, eu tinha ordem de
sair pra me divertir, se não faltasse convite seria, talvez, mais fácil. Quando
cheguei em casa, uma mensagem no WhatsApp de um número desconhecido: bom te
rever, continua linda. Ok, tem esse risco também, receber cantada barata. E pra
cantada barata, resposta cretina: obrigada, espero que sua esposa não seja
ciumenta. Recebi link do Facebook pra verificar que não havia esposa. Eu? Para
que mesmo? Dormi o sono dos que levantam cedo do dia seguinte. Os dias seguiram
normais: dor de dia, dor de noite, sofrimento madrugada a dentro. Remédio pra
aliviar.
Chegou o sábado, dia de Black
Santa no alto do Morro dos Prazeres. Meu lugar, onde eu divo sem fazer esforço.
E as possibilidades estariam lá, né? Sábado cedo já tinha mensagem dele. Falei
com ele que tinha outro evento, só que mais tarde, talvez pudesse passar no
baile dele primeiro. Isso requeria disposição dos 18 anos, de pular de evento
em evento e eu não tinha mais. Sabia que não iria, mas no fundo do coração
gostaria de conseguir ir. Quem sabe lá não encontraria pronto e acabado um
ótimo motivo pra sorrir? Fui para o Black Santa, linda, preta, no salto, já
preparada pra dormir por lá. Durante o dia fomos trocando mensagens sobre
amenidades, pois a minha vontade de envolvimento maior era nula. Com ele ou
qualquer outro. Possibilidades? Homens eram uma longínqua realidade pra mim
naquele momento. Flertar era bom, mas não havia vontade alguma de beijar, de abraçar,
de nada. A noite foi ótima pra variar, dancei a vontade, bebi, ri, revi amigos
de longa data. Dormi bem e em paz como se estivesse de fato tudo bem.
Chegou o domingo e um “fiquei te
esperando” me chamava atenção no celular. Primeiro dei de ombros: eu nunca
disse que iria, disse que tentaria. Depois me senti culpada: talvez ele
quisesse realmente contar com minha presença por lá. Não tinha muito tempo pra
me preocupar com a “dor” dos outros. Acordei moída e querendo minha vidinha de
casada de volta, não queria mais bancar a periguete solta no mundo. Lá no fundo
estava a maldita tristezinha. Então meu dia correu da forma planejada: subi,
almocei com meu pai, arrumei a bagunça do quarto que em breve voltaria a ser
meu e me senti um pouco melhor. Novo convite: “Vamos ao samba do Renascença? Um
amigo vai fazer esse evento, tenho que ir lá retribuir a visita no meu evento.”
Respondi que seria uma boa, talvez desse, pois estaria em casa no início da
noite. O dia passou e nada de contato meu, então ele resolveu ligar.
Propositalmente não atendi a primeira ligação. Que resposta eu daria? “Oi, eu
tenho depressão e preciso sair, mas não consigo. Então seja legal e pare de
insistir.” Depois da ligação, SMS avisando que tinha tentado falar. A culpa me
corroeu: respondi pedindo pra ligar de novo. E atendi. “Então, tá a fim de ir
lá no Rena?” Falei quase instintivamente: pode ser. Desagradável resposta, não
se diz pode ser a uma pessoa que passa dias insistindo em algo, me parecia
estar fazendo um favor a ele, quando a verdade era o contrário.
Fui pra casa no final da tarde.
Cansada, tempo chuvoso ainda que quente. E vontade zero de sair. No caminho pra
casa ensaiava várias formas de dizer “desculpe, não vou”. Ou era cansaço, ou a
hora que estava adiantada, ou o dia seguinte ser segunda... Mas não era pra ele
essa resposta: era pra mim. A luta era comigo mesma: você vai, precisar ir; não
quero, vou ligar tv e internet e ficar ouvindo música triste que me lembra o ex
e chorando. Por fim, tomei coragem e respondi a pergunta dele sobre onde eu
estava: me pega as 21h.
Em meia hora me aprontei da forma
mais simples possível. Não havia necessidade de superprodução, não iria
namorar. Sem batom, sem maquiagem, sem cabelão. Só salto e macacão verde.
Macacão que eu havia comprado ainda casada, aguardando o dia em que meu marido
diria “amor, vamos no samba?” e ele nunca disse, nem mesmo quando a iniciativa
partia de mim ele não arredava pé de seu computador e seu celular. Ou seria das
pessoas que moravam neles? O fato é que aquele macacão verde, discreto na
frente e com decote vertiginoso nas costas precisava ser usado. Salto, casaco e
guarda-chuva. Como se não bastassem todas as desculpas pensadas, ainda havia a
chuva bem real pra me fazer repensar a ideia. A mensagem berrava no meu
celular: estou aqui embaixo.
Desci pouco me importando em qual
impressão iria dar a ele. Estava indo mais porque já tinha confirmado do que
por vontade mesmo. Carro bonito o dele, um Cerato com cheirinho gostoso. Ele
tão simples quanto eu, calça jeans e camiseta, exalava um perfume forte, bruto,
mas ainda assim nada naquele momento me despertava nada de especial. Na cabeça
só martelava “o que estou fazendo na rua a essa hora?”. Fomos conversando pelo
caminho como se andássemos sem rumo. Ele não tinha pressa de chegar, eu menos
ainda. Amenidades. Quando chegamos ao clube, eu me separei dele que ficou na
entrada pra fazer algo e eu gelei só de imaginar o que estava imaginando, mas
não tive coragem de perguntar, pois sabia qual seria a resposta. Andamos por
todo o ambiente, cujo samba estava encerrando. Encontramos amigos deles e eu
absolutamente sem vontade de fazer a comunicativa. Ele tão dado e eu tão na
minha... Saímos de lá e eu pensando: se for pra casa, ótimo, nem com fome eu
estou. Mas achei que estava sendo tão injusta com ele. Pensando em mim apenas,
no meu momento e sequer considerei a boa vontade dele. Então sugeri que se
quisesse esticar mais meia hora (meia hora... quanta justiça, não?) poderia,
sem problema. “Quer ir pra onde?” ele perguntou. Dizer minha casa seria tão
golpe baixo... Deixei que ele escolhesse e saímos pelas ruas da cidade falando,
falando e falando. Estavámos nas proximidades do Centro quando no meio de tanta
coisa e quase sem perceber, pra justificar outra resposta anterior, eu disse:
tenho depressão e ele respondeu “eu já sabia”. Finalmente ele tinha dito algo
que prendeu minha atenção. Nos minutos seguintes, enquanto seguíamos sem rumo
ainda, ele me explicou porque havia detectado algo errado em mim. Falar com
estranhos sobre esse problema não era comum, muito pelo contrário: poucos
sabiam, até mesmo da família. Ele me disse que já havia percebido e conforme
fomos conversando ele foi dirigindo o papo até que eu não tivesse outra
alternativa a não ser falar. Ou mentir. Me senti nua naquele banco. Com a voz
serena ele me disse para não me preocupar, isso era muito comum, inclusive a
negação caso eu quisesse fazer, uma vez que muitos viam como uma doença incurável. Diante de tanta
compaixão, senti os músculos relaxando, um a um, como se finalmente eu pudesse
parar de fazer força comigo mesma.
Paramos em frente a um restaurante
no Leme, vento frio do mar arrepiando minhas costas quase nuas. Entramos em
outro estágio de conversa, não havia mais amenidades. Minha vez de conduzir o
papo até chegar onde eu queria. Falar de vida profissional é tão bom pra quem
gosta do que faz, e ele é dessas pessoas. Como ele havia passado duas vezes nas
provas e por duas vezes rejeitado nos exames físicos abriu uma ferida em algum
lugar. Na terceira e com grande incentivo do pai, ele passou em tudo e iniciou
sua carreira de sucesso. Viajou, aprendeu seu ofício, mudou, sustentou sua
família, aprendeu muito na vida profissional. E antes que terminasse de falar,
as lágrimas corriam soltas enquanto ele olhava por cima de mim, para o mar
escuro que espumava na areia. Ponto pra mim: na arte de tirar palavras não
ditas de alguém, eu já havia me especializado. Encostei seu rosto completamente
molhado ao meu, minha melhor tentativa de confortar aquele homem que, ora
fragilizado, estivera tão seguro de si a noite toda. Quando se deu conta que
agora havíamos mudado de lado, tentou se recompor, me pediu desculpas com o
rosto ainda colado ao meu. Eu não vi necessidade de desculpar, nós não
escolhemos os obstáculos que vamos enfrentar, apenas escolhemos enfrentar ou
não os que aparecem. Enquanto falava, ele me pedia desculpas por perder o
controle e eu insisti que não havia nada de errado. Então ele afastou o rosto o
suficiente para que apenas nossos lábios se encostassem, tão de leve como o
vento frio que ainda me chegava pela varanda do restaurante. Sem urgência, sem
obrigação, quase sem querer nos beijamos. Gratidão talvez. Ou talvez até ele
estivesse planejando isso desde que me encontrou, mas certamente não da forma
que aconteceu. Um beijo demorado, paciente, tranquilo, ainda molhado de
lágrimas.
Nossa garrafa de vinho ainda nem
tinha começado direito, ainda tinha assunto pela frente. E outros beijos.
Quando acabou, já na segunda hora do novo dia, ele ainda queria passear nas
areias desertas. Eu protestei, era perigoso. Ele: então calma aí e se virou
para ir até o carro. Dei um berro: não! Não queria nem saber, só queria me
sentir segura, sem forçar nada. Passamos ainda alguns bons minutos ali em pé,
tantos beijos e abraços trocados, até que rumamos para minha casa. Eu com a
forte sensação de que aquela noite, da forma que começou e finalizou, não tinha
nada de normal ou coincidência. Mas estava tarde pra pensar que minha intuição
nunca falha. Quando desci do carro, queria apenas dormir, embora soubesse que daquele
dia em diante tudo estaria radicalmente mudado.
Os dias que se seguiram foram mais
que ótimos. Eu só ainda não sabia que poderia potencializar essa felicidade.
Eu? Não, eu nunca poderia mesmo. Deus era o único com esse poder.
E assim Ele fez.
Continua.
LN
<---conte da="" do="" postagem---="" sua="">
---conte>
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