Com atraso de 10 minutos, dentro da
normalidade, adentrei a sala já cheia e muito rapidamente enquanto me movia
para o fundo, deixei que os olhos percorressem o espaço e me dessem os dados
estatísticos: apenas dois negros no meio de cerca de 30 pessoas — um deles era
eu.
Aquele curso seria especial: o primeiro no
contexto literário, paixão antiga que me move. O primeiro; talvez o único,
talvez não. O dia seria uma surpresa completa, mas eu ainda não sabia disso. No
entanto, ainda sentia que estava me colocando numa posição de confronto comigo
mesma, com minha verdade e minha ilusão: escrever é um desabafo ou um talento?
Talvez ambos. Fui em frente.
Na apresentação dos alunos, havia um ator,
eu, e um escritor cujo trabalho social na favela havia sido noticiado por todo
o mundo. Não dei muita importância ao fato do projeto social em si, apesar de acha-lo
digno de reverência, mas o que me chamou atenção nele foi o fato de ser
meu vizinho. Quando a turma foi dispensada para o almoço, quis o destino que nos
encontrássemos ao acaso numa banca de jornal. Assunto puxado por mim, o papo
fluiu por uma hora num almoço rico em descobertas e afinidades. Ele tinha uma
humildade bonita, uma doçura que há muito não via num homem. Nos atrasamos no
retorno do almoço, o tempo tinha se tornado coadjuvante.
Curso prosseguiu conforme o esperado,
talvez melhor. Não sentei perto, não mudei nada de lugar, apenas a vontade
apertada no peito de continuar o papo tão agradável até não poder mais. Quando
acabou, eu disse “vou ao banheiro”, deixando-o assim livre para ir embora. Ele
me respondeu “te espero”, me fazendo sorrir por ficar.
O trajeto até o ponto de ônibus levaria no
máximo cinco minutos caminhando. Em quinze ainda estávamos na metade. Em vinte
finalmente paramos para continuar aquele encontro que, segundo ele, não era a
primeira vez que acontecia. Ainda era uma tarde gostosa de verão: devassa loura
pra mim, suco de abacaxi pra ele. Abri o registro dos cotovelos e falei tudo
que me vinha a mente, e ele paciente e atentamente me ouvia, qualidade que
admiro muito no outro, uma vez que sou eu sempre a que ouve, entende, orienta.
Ali eu era aprendiz e isso me fascinava deveras. Em dado momento, minhas mãos
estavam seguras entre as dele. Que espécie de homem ainda segura a mão enquanto
conversa hoje em dia? Isso é coisa de alma.
A noite caiu e decidimos finalizar o dia de
enriquecimento cultural no Oi Futuro, mas àquela hora já estava fechado. Ganhei
um abraço, frio percorreu a espinha. Ele tinha certeza de que já me conhecia de
algum lugar. Eu sugeri que esse “reencontro” era de outras vidas. A noite já
seguia alta quando decidimos ir embora. Na verdade, eu precisaria trabalhar no
domingo, então a minha noite não poderia avançar a madrugada. No caminho para
casa, novamente minhas mãos entrelaçadas com as dele e olhos que diziam uma
infinidade de súplicas sem que as bocas fossem capazes de pronunciar.
Precisava ter um fim, mas estava praticamente
impossível determinar qual seria. Parecia um texto muito bem escrito, revisado,
mas sem a conclusão que levaria o leitor as lágrimas. O final. Qual poderia
ser? Um corte. Não poderia ter fim específico, porque não era romance, era
conto. Um delicioso conto sobre duas almas que se reencontram com algum propósito
que não se sabe bem qual seja.
Dias depois ele usou a palavra “encantamento”,
que pensando agora, bem define aquela tarde e a noite que a seguiu. Apenas
aquele início de madrugada morna testemunhou o fim do conto.
Desse reencontro encantado surgiram ideias,
outras foram fortalecidas. O mais importante é que vida após vida, de alguma
maneira damos um jeito de nos achar e fazer o outro ter algum prazer em estar
nesse mundo.
LN
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada por vir e por ler!
Fique a vontade para comentar, sua opinião é muito bem-vinda.