quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Formatura - Primeira Parte: a de dentro

“Tudo tem a sua hora”, assim ela me ensinou. Imediatista por natureza, senti o peso da vida me ensinar a ser paciente: tudo tem a sua hora e na maioria das vezes não é a mesma que a minha. Quando a hora certa de cada coisa chega, não precisa de aviso, o Universo inteiro se organiza a fim de que você possa aproveitar o que tanto desejou.

Dia 19 de janeiro de 2011, minha formatura do curso Superior de Tecnologia em Gestão de Recursos Humanos. O momento mais aguardado de uma vida, de duas vidas. Minha realização, minha vitória, minha resposta aos narizes tortos. “Quando alguém espera alguma coisa ruim de nós, temos de fazer exatamente o contrário”, isso ela também me fez aprender, para usar naqueles momentos em que a pressão por ser mulher, negra, cheia de atitude e morando no alto da favela, te fazem a pior pessoa do mundo, de quem só se espera ensino médio incompleto, três filhos de pais diferentes, um ou todos os pais traficantes e um rio de lágrimas pra chorar pela própria infelicidade de não poder servir de exemplo pra ninguém.

A filha da Luzia. Aquela de quem se esperava — talvez até se tivesse alguma certeza — que a existência seria dedicada aos homens, aos filhos, a mediocridade da vida no morro. Essa menina não tem jeito, não... Luzia, dá um jeito na Lucille! Por tantas e tantas vezes eu ouvi essa frase em tom de escárnio: filha da Luzia. Seria uma ofensa a mim ou a ela? Talvez às duas, uma por ser isso e a outra por ser aquilo; ambas eram iguais. Ficava tentando entender o que era ser filha da minha mãe. Algo ruim ou algo que no futuro seria ruim? Ou será que esta frase cheia de crueldade significava que minha mãe só poderia ter uma filha ruim? Ela era ruim? Eu era? Uma coisa ficou definida ainda na infância: eu não tinha o direito de errar, pois isso me cravava ainda mais na testa a frase sempre dita em tom maldoso “filha da Luzia”.
É... Ironia do destino, não? De toda a minha família, lado materno e paterno, eu sou a primeira neta e segunda mulher. E se não tivesse criado meus próprios obstáculos, teria sido a primeira em tudo.

Hoje, mais do que qualquer outro dia da minha caminhada, eu sou FILHA DA LUZIA. Naquela noite quente de quarta-feira, com aquela faixa lilás na cintura, eu gostaria de dizer ao mundo que não era a Lucille ali se formando, era a FILHA DA LUZIA. Quando passei pelo tapete vermelho e subi ao palco, quando me sentei, quando li o texto por mim escrito para homenagear uma das professoras, quando fui aplaudida e extremamente elogiada pelo texto, quando voltei para receber o canudo e quando, por fim, exausta de represar a emoção engasgada por nós duas, escondi o rosto com as mãos e chorei, em todos esses momentos, eu não era eu, era FILHA DA LUZIA.

Nesses anos todos, ela nunca, nunca me jogou na cara que a gravidez aos dezessete anos lhe tirara muitas oportunidades. Nem mesmo que havia se arrependido de levado a gravidez adiante. Não era apenas uma gravidez, junto viria um pai, muito mais indesejado que o filho. As dificuldades foram muitas, provações, incontáveis noites de lágrimas, de dor física e na alma, de sofrimento doído por uma única escolha errada. Em muitas dessas noites eu participava desse sofrimento, quieta, deitada, encolhida com minhas bonecas, fingindo um sono que só chegava com os primeiros raios da manhã.

Carreguei uma cruz que não era minha — ninguém nunca disse que era. Quando a deixei de lado, um assopro foi o que bastou pra me impulsionar pra frente. “Não se preocupa com nada, cuida do teu estudo”, mais uma vez ela me disse. E eu caminhei e pisei com força e fé, sabia onde queria chegar e decidi que nada mais teria poder de me fazer parar. Foram quase seis meses dedicados a uma monografia, trabalho mais importante da graduação. Os parentes que vi foram os que foram a minha casa. Os amigos que vi foram os que se contentaram com um recado pela internet ou nas raras duas ou três vezes que me dei folga para não enlouquecer. Pensei: quem me quer bem de verdade vai me entender e me apoiar. E houve de fato quem não entendesse. Talvez tivessem achado desnecessário, palhaçada. Silêncio.

E assim vivi em quase três horas a grande lição materna: fiz exatamente o contrário do que esperavam de mim. E fiz o que eu quis fazer, fiz o que ela me educou para que eu fizesse. Fiz o que Deus esperava e me deu oportunidade de fazer.

Parafraseando Renato Russo, provei pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém. Sou o que eu quero ser, não o que os outros pensam que eu seja. Como eu gosto muito de dizer: é com a minha consciência que eu durmo. Não me formei pra agradar ninguém, ou pra pagar alguma dívida de gratidão; me formei porque era minha vontade, porque eu decidi que assim seria e assim fiz acontecer. Contudo, o mérito desta conquista não é apenas meu. O orgulho de pertencer ao grupo das pessoas com nível superior é compartilhado com ela, a pessoa que comprava meus livrinhos, cadernos e lápis, que arrumava o uniforme, que ia a escola nas reuniões de pais, que me buscava depois da aula pra ir ao cinema, que me abraçou forte quando eu chorei porque tinha, finalmente, concluído e entregue a monografia, que ficou com a minha cópia e mostrou pra todo mundo até ficar “cansada de ganhar parabéns”, que acompanhou essa parte da caminhada e da sua maneira, fez o impossível para que eu realizasse o meu objetivo, nosso sonho. Então a vitória é nossa, minha e dela, que não fez curso de como criar um ser humano, mas que tem a alegria de ter feito um bom trabalho e carrega no peito aquela certeza de que só as mães são verdadeiramente felizes.

Fiz o curso que eu queria, para trabalhar com aquilo que amo. Sou Analista de Recursos Humanos, apta a transformar a natureza e a sociedade com o meu trabalho.

Cumpri meu compromisso comigo.



L.

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