terça-feira, 29 de junho de 2010

The Great Debaters (O Grande Desafio)


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Os dias têm passado depressa nas últimas três semanas. Muitas e muitas vezes me sento aqui, vasculhando no meu monte de ideias algo que seja prazeroso registrar. Falar apenas de mim, meus dias, minhas desventuras e amores nem sempre me satisfaz. Para alguém que se julga boa o suficiente para si mesma — porque não importa o que pensem os outros, eu preciso me saber pronta e capaz — realizar algo e dar ao mundo um pouco do que existe em mim é muito mais do que apenas digitar algumas linhas: é necessário que seja como a garrafa que derrama o líquido e se enche de ar, já que é um pouco de mim que ficará neste mundo, é necessário que eu me encha de alegria ao derramar minhas palavras.

Em alguns momentos cheguei a pensar que me faltava inspiração ou que essa coisa de dissertar sobre temas alheios a minha vida fosse algo que merecesse muito mais estudo e tempo para ficar bom. Relendo os textos antigos e sem conseguir acreditar que fossem meus, saídos não de minha imaginação, mas de meu conhecimento da vida, ficava tentando encontrar a base, o motivo que me levava a escrever tão bem sobre determinados assuntos, ainda que não os dominasse. Chegava a parecer sobrenatural, já que num dia de leitora e não de autora, tendo a me sentir insuficiente diante do que produzo. Pois bem, creio que me subestimei mais uma vez.

É noite gelada do final de junho. Sob dois edredons pesados me pus a assistir um filme que encontrei largado entre os lixos perdidos, escombros de uma relação que desmoronou sob minhas vistas e foi levada com a enchente de minhas lágrimas.

As letras do título do filme me traziam a lembrança de quem as escreveu e, como determina a visão sempre analítica do meu trabalho, observei-as mais detidamente e concluí que o filme devia ser de massacre, terror, briga e sangue espirrando para todos os lados. Isso seria realmente uma análise grafológica ou apenas mais um sopro de mágoa? Diante de minha própria dúvida, pus o DVD no player a fim de descobrir do que se tratava e constatei que, tendo Denzel Washington capitaneando-o, provavelmente deveria ser interessante. Em outras ocasiões, tentei assistí-lo três vezes. Da primeira, telefone tocou, atendi, visitas, casa a arrumar, acordar cedo no dia seguinte e a história que seria contada ficou para outra hora. Quem sabe com o namorado novo?, pensei. Da segunda vez, como foi extremamente mal gravado, o DVD pulou feito boi de rodeio e eu não consegui acompanhar mais do que as primeiras cenas, mas ao menos consegui sentir que era um filme que tocaria em algum assunto delicado. Mas o que me dizia isso? Com sono e cansada, não consegui encontrar a resposta.
Hoje, sozinha e protegida do frio, xícara de chá de maçã para ficar mais confortável, pus o filme no computador.
Descobri porque ele havia me chamado a atenção: negros, juntos e em festa, numa noite qualquer de muitos e muitos anos passados. E por que isso me faria querer ver um filme?, questionei-me enquanto configurava as legendas. Porque estas pessoas desse passado, de uma forma ou de outra, fazem parte da minha História. Porque eles lutavam pelo direito que eu mais prezo nessa vida: o de ser livre física e psicologicamente. E apesar do discurso vitimista de muitos negros atualmente, do que lhes foi tirado, negado, roubado, prefiro crer que todo esse sofrimento e luta não tinha apenas o propósito daquele momento, mas também este, o que acontece neste justo momento: seus descendentes tendo a oportunidade de ler, escrever, sem grilhões, sem açoite, sem medo, participando de uma sociedade, girando a roda do mundo com a própria vontade, donos de seus próprios caminhos, contudo, sem jamais esquecer dos que vieram antes e levando suas histórias aos que vierem depois.

Exatamente como da outra vez, telefone tocou. E ficou tocando silenciosamente. O vizinho começou a entoar músicas evangélicas a plenos e desafinados pulmões. Mas havia naquele filme algo que não combinava com a derrota. Desliguei o telefone e pus o volume das caixas de som no máximo. Muito mais do que apenas assistir um filme, eu tanto queria quanto precisava daquele momento comigo.

O filme baseado em fatos reais, narra a história de um grupo de alunos de uma pequena faculdade para negros no Texas, Estados Unidos, em 1935. Lá onde havia ônibus para negros, bares, municípios, estradas somente para negros. O trabalho nos campos, nas lavouras e doméstico nas casas de família e as prisões também eram feitos especialmente para quem nascia não-branco. Naquele tempo, assim como antes, olhar um branco nos olhos era o que bastava para ser detido, esmurrado, cuspido, amarrado a dois carros que, marchando em direções opostas, partiam o negro ao meio. Ou em várias partes.

E foi naquele tempo que um professor anarquista ensinou aos seus alunos o que perpetua até hoje entre os docentes: somente o conhecimento traz a vitória. O conhecimento é que nos diferencia, é nossa mais valiosa moeda de troca. Conhecimento é bem eterno, durável, do qual jamais poderemos nos desfazer e o que ninguém é capaz de nos roubar.

E foi com o conhecimento, e, claro, uma boa dose de inteligência emocional, embora naquela época não definissem assim, que os jovens negros reescreveram suas histórias com o suor da luta de quem vence a si mesmo, para então descobrir que eram capazes de lutar contra outros e vencer qualquer obstáculo, ainda que parecesse intransponível.

Não há oponente mais poderoso do que aquele que dorme e acorda ao seu lado, sabe todas suas fraquezas e usa-as para lhe dizer a todo o momento que você não é suficientemente bom para algo. Nada é mais difícil do estar contra si mesmo.

Quando o filme acabou, com a manga da camisa sequei as lágrimas, não de tristeza, mas de orgulho, uma forte sensação de que após quase 50 anos da morte do aluno mais novo daquele grupo, que na época tinha apenas 14 anos — e já estava na faculdade — tudo aquilo continua sendo lição e motivação para que continuemos lutando e provando ao mundo que não é cor de pele que nos limita e muito menos diz quem somos: continua sendo o conhecimento que nos difere, engrandece e nos permite ser o que quisermos. Até mesmo imortais, porque nossos corpos se vão, mas nossas idéias atravessarão tempos imemoriais.

Talvez este texto não fique tão bom quanto os antigos, talvez eu me ache realmente o último biscoito de chocolate do pacote no meio da tarde de trabalho, mas enfim, é o que gosto de fazer, é o que amo, é o melhor de mim, por hora, que posso deixar aos que me sucederem com um desejo íntimo de que sejam melhores que eu, que tenham mais conhecimento, que alcancem até onde suas vistas não puderem chegar.

E aos que me precederam... Obrigada por jamais deixarem escravizar suas almas e coração, porque livre é o que nós somos desde que nascemos.

Kerabe?
Kera dorong!

L.

Um comentário:

Yasmim disse...

"livre é o que nós somos desde que nascemos."

Liberdade, difícil de lidar com ela. Temos todo um mundo a constuir, porque nada está dado, temos a liberdade de fazer o que quisermos.
Sua construção, visível a mim, a partir da liberdade tem sido este blog. Que algo lindo de se constuir. Adorei o template, borboletinha.

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