segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sempre conosco, queridos

- Mamãe?

- Oi...

- Eu tenho medo. Estou assustado.

- Estou um pouco também, mas quero que confie em mim. Você acha que pode?

- Claro, mãe.

- Então venha, me dê sua mão e mergulharemos juntos. Feche os olhos. Não vai doer. E nunca se esqueça: estarei sempre do seu lado, aconteça o que acontecer.

*

Cheguei ao trabalho, em cima da hora como de costume, fui direto ao ponto digital. Reparei na figura sentada na recepção ao lado da minha sala, rosto branco, ossos finos, cabelo castanho cortado baixo e desalinhado. Dei-lhe bom dia e ele me retornou com o habitual e sorridente bom dia, porém, com algo de diferente no olhar. Eu não sabia o que era, não estava visível, mas meu instinto me dizia que havia algo me muito errado por ali. Deixei as bolsas sobre a mesa e dei meia volta para apanhar o primeiro dos muitos cafés do dia. Ele já não estava mais por ali, devia ter sido chamado para suas tarefas reprográficas diárias. Enquanto me dirigia ao banheiro, a sensação de algo fora da ordem natural aumentava. De volta ao caminho para a sala, finalmente deparei-me com ele novamente sentado lá, amuado, rosto contraído. Parei do seu lado, como tantas vezes fizera para conversar rapidamente, e perguntei se estava tudo bem. Não estava. Nem esperei que terminasse de me dizer o que sentia. O alarme interno soou. Questionei se havia falado com o médico, baixando os olhos ele me respondeu que não, pois havia ouvido dizer que apenas os funcionários tinham direito. Eu entendi que tinha que agir rápido, movida não sei pelo que, nem como e muito menos por que. Impulsionada por uma força muito maior que eu, uma determinação incomum, abri a porta, deixei o café sobre a mesa e no mesmo girar de calcanhares, tomei-o pelo braço e levei ao médico. Poderia ser uma situação de rotina, uma atitude de um colega de trabalho que se preocupa com outro, ou apenas um ato de um ser humano para com outro. Mas, aqui dentro, eu sabia que não era, sabia que não tinha sido colocada ali, naquele momento a toa. Era eu, era ele. Minutos após ele apareceu no vidro da minha sala. Saí e o encontrei com os olhos marejados. O alarme soou ainda mais forte. Corre. Fica. Ouve teu coração. Perguntei o que era, então. Sintomas de Influenza A, H1N1. Gripe suína e dois dias de observação em casa monitorando a febre. Era o primeiro caso suspeito. O alarme então disparou. Abandonar o navio! Mas sem ele? Eu seria capaz de, para me salvar, abandonar um menino sozinho, assustado com o poder devastador e silencioso de uma doença que está tirando tantas e tantas vidas como que fossem feitas de papel? Tão rápido quanto um raio, as imagens vieram-me a mente em fotos instantâneas. Minha mãe, eu, a catapora e meu irmão na barriga. E ela não me abandonou. E ele nasceu perfeito. Então, eu não podia simplesmente dar as costas aquele menino, não seria justo comigo mesma. Tão calma e amistosamente como conversávamos sobre o fim de semana, afaguei-lhe as costas e disse-lhe que não se preocupasse, pois se fosse mesmo a gripe, estava sendo descoberta no início e ele iria se medicar, o problema era quando as pessoas não tinham atendimento correto. Como mágica, os olhinhos assustados reassumiram o tom normal, ou quase. Despedi-me dizendo que me ligasse caso precisasse de alguma coisa. E, após ainda realizar uma tarefa, pois eu o vi pelo vidro, finalmente ele se foi. Tentei analisar a seco aquela situação e suas ramificações. Um menino que é responsável por algo importante no trabalho, mas que não sente que algo deste trabalho seja responsável por ele. Uma profissional de Recursos Humanos pró-ativa e uma mulher com o instinto de perigo aguçado. Uma doença e muitos medos coletivos. O médico deu a ele quatro horas para aguardar a febre se manifestar. Ao final deste tempo, eu me debruçava diante do telefone para ter notícias dele. Nada de febre, felizmente. Mas meu coração ainda estava preocupado. Mandei o número do celular caso precisasse de mim fora do horário de expediente.

Rumei para o banheiro, o alarme ainda estava disparado e eu não entendia o motivo. Fiquei lembrando do meu aniversário...

Como caiu num domingo, os parabéns no trabalho naturalmente só viriam na segunda-feira. E como as lembranças da primeira comemoração não eram boas e me martelavam a mente, quando pisei no trabalho já nem me lembrava mais do dia especial que havia sido no domingo. Ao me virar, após marcar o ponto, deparei-me com um enorme sorriso, tão grande que me confundiu e dois braços abertos como o Cristo, me esperando com um fraterno e acolhedor abraço. Jamais imaginaria que alguém que troca assuntos bem rápidos comigo fosse olhar meu nome na lista de aniversariantes e me receber daquela calorosa forma. Fiquei tão feliz que voltou a fazer sentido o dia do aniversário. Surpresa e felicidade.

Quando fechei os olhos pra secar algum líquido que deles minava, ao reabrir, me senti tonta. Já havia almoçado, não era fome. Uma borboleta passou tão depressa por mim que quase não consegui acreditar no que pensei. As mortes por contaminação pelo vírus da Influenza A. Bebês, menores de 2 anos e gestantes estavam sendo abatidos sem piedade. E tratados como estatística pelas autoridades médicas. Minha vez de ir ao médico. Ele também tinha visto a borboleta, e muito mais que eu, acreditava nela.

Muito mais zonza, entendi finalmente o motivo do alarme disparado. Tentei buscar a única pessoa que achei que poderia me ajudar, pelo menos a pensar. Estava errada outra redonda vez.

Não havia mais tempo para pensar bobagens ou superficialidades. O momento exigia atitude. Voltei ao banheiro, passei algum tempo me olhando, tentando descobrir no rosto algum indício da verdade. Não há ainda. Se é que há. Não tive medo, não chorei.

Saí do trabalho estranha, com vontade de abraçar todo mundo e cantar. Queria parar de pensar, queria ocupar a mente com outra coisa a fim de deixar a euforia para o devido momento. Impossível. Ventava tanto que era difícil me concentrar no caminho. Parei, um tanto confusa quanto qual escadaria subir. Ri sozinha, porque eu não estava mais com vontade de chorar. E nem tinha mais motivo. Ou tinha, mas não queria.

Pensei na Yoga, no Pilates, no Spinning. Os quatro quilos perdidos. E lembrei que havia acabado de devorar uma torta de abacaxi. Ri.

Lembrei do meu pequeno amigo de trabalho e do momento em que estivemos bem próximos, o que facilitaria o contágio. Deus estava conosco e estará sempre. Aliás, Emanuel significa “Deus conosco”. Segui meu coração, meu instinto infalível e agora tenho ainda mais certeza de ter seguido o caminho certo. Meu coração está sorridente e cheio de esperança no amanhã. Já tive dúvidas sobre minha qualidade profissional, como acho que todos tem um dia na vida, mas hoje vejo que eu nasci para o que faço, e o que faço é com todo o meu amor.

*

E, quando tudo perder o sentido, teu sorriso será a razão do meu continuar.

L.

[Texto escrito de uma tacada só, sem parágrafo ou formatação, no meio de uma tempestade emocional. Dedicado de todo coração a D. Rodrigues e "E. Nascimento".]

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