quarta-feira, 17 de junho de 2009

A mezza via

De repente olho ao redor, paro a prestar atenção em mim, e me vejo assim, sozinha. Só e tão só como jamais me senti em todos esses anos. A solidão que me despe e retira, uma a uma, cada dura e grossa camada de proteção que cuidadosamente pus sobre mim, torna-me não mais uma mulher, mas uma menina, perdida, machucada, magoada, suja e tão profundamente amedrontada.

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Tantas coisas acontecem ao mesmo tempo, não há mais golpes de ar, agora a força da ventania não me deixa dar dois passos; quando menos espero sinto a dureza do chão contra minhas costas.

Muitas coisas podem acontecer ao mesmo tempo, mas só determinados fatos é que tem poder de, sozinhos ou pior, em conjunto, transformar um fechar de olhos em algo realmente impossível.

Hoje não quero me preocupar com o que os outros vão ler, com regras ortográficas, pro inferno tudo e todos! Hoje, nesse palco, eu enceno a peça mais verdadeira de todas, dirigida e estrelada por mim, com meu próprio texto, nascido de improviso.

Hoje eu só quero me desfazer em palavras.

Hoje eu entendi que minha caminhada não será, como nunca foi, facilitada pelo divino e nem pelo mundano. Estou aqui sentada aqui tentando organizar o turbilhão de idéias e sentimentos que se misturam a dor e alegria de perda e liberdade.

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A empresa nova me trouxe muitas facilidades e até recompensas, mas, como uma faca de dois gumes, me expôs severamente ao um dos agentes que, em outra época, foi capaz de me deixar vinte dias em recuperação de uma cirurgia. E agora, com uma dor absurdamente forte por baixo dos olhos, corri para a emergência, não querendo, mas já sabendo que tipo de resposta médica ouviria. Dividida entre a dor e o pavor de tais comentários médicos, fui à casa de saúde, pelo menos para satisfazer a urgência de aliviar a pressão sobre as maças do rosto.

Quando desci do ônibus, desequilibrei no salto alto, quis acreditar que fosse culpa das pedras, mas sabia que eram as pernas que estavam bambas. O medo estava junto, meu único acompanhante.

Reuni todas as forças e tentei manter a calma. Enquanto o médico não me chamava, muitos pensamentos percorriam o longo caminho da minha mente, impedindo que eu me pusesse a chorar e desarrumasse a fantasia de mulher forte e decidida, que se vira muito bem sozinha.

O médico, um latino de estatura baixa, ouvia minhas queixas enquanto digitava e fazia perguntas de rotina. Em pouco tempo eu estava sendo submetida a uma bateria de exames: dor, febre, pressão, sangue, ossos. Não havia febre, mas quando ele pressionou os polegares sobre meu rosto, a sala girou. Eu sabia o que eu tinha, e o que eu tinha era tudo que eu mais temia ter, em quase 10 anos desde a cirurgia. Mas, provavelmente levado pela descrença médica, ele preencheu no prontuário “mal estar e dor de cabeça”. Queria muito mais que ele que não passasse de um mal estar.

Tornei a esperar, mas desta vez pelo radiologista. Quando me chamou, um senhor de meia idade e calvo, que andava rápido e falava baixo e pausadamente. Gostei dele imediatamente. Havia nele um quê paternal que me fez sentir mais que apenas uma paciente do hospital. Troquei de roupa para o raio-x, e, sob a bata de algodão, meu corpo todo se retesava com o frio do local. Durante todo o processo, ele foi tão paciente e tão educado, que quase me esqueci da dor. Levanta o braço, isso, agora enche o pulmão de ar, quietinha. Ao me posicionar para o raio-x da face, riu ao me lembrar que eu deveria ficar de boca aberta. E para me ajeitar de lado, pediu licença para encostar uma das mãos em minhas costas coberta pela bata. Quando ele me deixou sozinha na penumbra da sala, enquanto ia revelar as “fotos”, pensei que ele devia ser um pai bastante carinhoso. Meu pai mesmo pedia licença quando eu já estava quase moça. Engraçado... Afastei esse pensamento e recoloquei os outros no lugar.

Ele voltou, com as seis placas e, após repetirmos uma, me avisou que eu poderia trocar de roupa e aguardar lá fora novamente.

Entrei na cabine, e enquanto puxava lentamente a bata pela cabeça, em fila e ordenada elas vieram. Rolaram quentes pelo rosto e eu nem ao menos podia parar. O frio, a solidão, tudo se misturava a dor que, juntamente com as atitudes do radiologista, me fizeram vestir a blusa e constatar que, por baixo dela eu estava molhada com minhas próprias lágrimas.

Voltei à recepção do hospital, com o rosto perfeitamente inchado e rezando para ninguém perceber. Estava tentando distrair a mente falando ao telefone, mas só deu tempo de dizer “Oi... daqui a pouco te ligo, o médico me chamou” e fui ao encontro dele, naquela sala de paredes claras.

Sentei do outro lado da mesa, esperando ver em seu rosto a expressão de triunfo, com seus anos e anos de medicina falando mais alto ao meu achismo. Mas não vi. Ele ergueu a foto, colocou contra a luz e me mostrou a parte excessivamente preta ao redor do osso nasal. Fiquei olhando aquilo, entre incrédula e decepcionada. Não ouvi mais nada, nem medicação, nem tratamento. Sentindo os olhos marejarem com violência, estanquei com os dedos e fui direto ao ponto: preciso operar novamente? Médicos podem ser cruéis e covardes se assim desejarem. Sem me olhar, ele respondeu que era melhor conversar com meu médico para que ele avaliasse melhor essa necessidade, depois dos remédios. Diz logo, eu gritei, diz logo que vou ter que passar semanas em repouso, depois daquela maldita dor aguda que fica depois da anestesia geral. Diz que essa droga de macha preta nessa tela é um castigo e que essa dor de agora não será nada comparada a dor de ter dois tampões em forma de cano dentro de mim. Diz, anda logo, diz!!! Foi tão forte e tão alto que tremi com os gritos que só eu ouvi. Possivelmente sabendo que estava diante de uma pessoa a beira de se virar em milhões de pedacinhos, despediu-se de mim com um “vá com Deus, meu anjo”. Ah, doutor, Ele é tudo que eu preciso nesse momento.

Saí do hospital perdida, confusa. Não reconhecia o bairro que andei a vida toda. A visão embaçada pelo líquido quente, dificultava o simples ato de colocar um pé diante do outro.

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George Michael - You have been loved

Não lembro como, mas consegui voltar pra casa.

Vencendo os degraus, levando o dobro do tempo, entre uma mensagem de texto e outra, demorei tanto que fui alcançada por minha tia. “Ele já foi, né?”

Já?

Como foi? Pra onde? Era verdade, então?

Terminei o caminho acelerada. Abri a porta, joguei longe as roupas usadas no hospital, e, ignorando a notícia que deveria dar, perguntei a minha mãe se ele realmente tinha ido. Não precisava: o ar já me respondia. A garrafa de vinho sobre a mesa coroava. A sala vazia, cheia apenas de nós, era a expressão daquela partida.

Uma vida nova em outro lugar, outro país, talvez até outros filhos. O filho que ficou, chorou. Eu ri, debochada. Chorar por quem te fez chorar? Porque não foi embora com ele?

Voltei ao quarto, tateando alguma coisa pra pegar, segurar, quem sabe jogar longe. Sentei de frente para o computador, tentando encontrar o que estava faltando. Telefone tocou, atendi. Ouvi minha voz sair estranha, mas não tinha certeza. Senti um nó enorme na garganta, não havia mais voz. Havia soluços. Desisti. Abruptamente desliguei o telefone e gritei. Dessa vez, perfeitamente audível. Um grito de dor. Uma dor de mágoa e rancor, mas também de solidão, de tristeza. Chamei por ela, que surgiu no quarto achando que tudo era produto da ligação que eu havia recebido. Quando eu me virei e murmurei “vem cá” ela entendeu que a fonte era mais enraizada, era na alma. Quando ela me abraçou e pos minha cabeça em seu colo, deixei que os rios rompessem as represas, que todos os oceanos cobrissem as terras daquela dor. Apenas deixei que a menina brincasse na chuva de suas lágrimas, sem medo das trovoadas de seus soluços, porque sabia que era essa chuva que deveria ter caído há mais tempo, para irrigar terrenos secos do coração. E quando a calma foi chegando, as palavras saíram aos borbotões, misturadas, tudo querendo se libertar de mim ao mesmo tempo. Ainda aninhada no colo, falei o que pensava verdadeiramente dele. Aquelas palavras pesadas, antes só pensadas, agora eram bem reais e tinham uma testemunha. Eram palavras do coração, sentimentos tão bem guardados que eu poderia jurar que nunca os tinha conhecido. Quando o silêncio chegou, percebi que ela estava com a mão em meus cabelos, arrumando os cachos num rabo de cavalo, como tantas e tantas vezes fizera nos doces momentos da infância, em que eu me colocava entre suas pernas para ser penteada. Assim, com o cabelo preso em duas marias-chiquinhas, pulava pro outro colo, do qual era dona absoluta, onde era a “coisinha tão bonitinha do pai”.

Sinto medo dessa ausência. Não é como eu imaginava. Estou confusa e queria ter pelo menos uma certeza para me agarrar agora. Tanta coisa mudou, do momento em que acordei até agora, enquanto peço por favor para que o sono venha. Sem sucesso. Acredito que o amanhã será mais generoso. O tempo ajudará a desatar os nós e curar algumas feridas.

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Se você conseguir ler, se conseguir chegar até aqui... mas você nem sabe que eu escrevo, né? Poderia ter dito tchau de manhã, poderia ter avisado que era hoje... mas eu não teria te dado ouvidos, né? Então, se o acaso o trouxer aqui algum dia, apesar de tudo, eu acho, acho que... bom, o efeito dominó vai parar em mim. Prometo a nós dois. Prometo a nós quatro. Lembra daquela pequena mão no teu rosto? Então trate de não esquecer nunca. Pelo menos disso. Tenha cuidado.

L. Nascimento

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