terça-feira, 7 de abril de 2009

E no quinto dia...

Enquanto houver vida, haverá esperança. A ira é, de todos os sentimentos, o mais poderoso e o mais desastrosamente marcante. Sendo uma conhecedora, digamos, experiente desse tipo de poder, fechei os olhos e escolhi mentalmente o melhor modo de lidar com a situação, também já conhecida, sem que corpos ficassem estendidos pelo chão. Bom, nunca foi pra tanto, afinal, o único corpo que sempre ficou estendido, dilacerado, chafurdado, contundido, esmigalhado e ferido foi o meu. E era justamente esse pedaço de paraíso que eu deveria preservar. Com vigor, puxei o ar num suspiro profundo e demorado. Segurei-o até sentir que as idéias soltavam-se das paredes do cérebro com a agitação das moléculas presas. Quando soltei o ar pela boca, um esboço de sorriso surgiu em meu rosto. Pronto. Geralmente uma idéia que é precedida por um sorriso não acaba bem. Começa muito bem, divertidamente maquiavélica, mas não termina a contento. Ignorei este fato e, com os olhos virados para o futuro, desenhei o próximo passo. Questionei-me sobre o real motivo da ira. A repetência da atitude covarde para comigo é que me deixara assim? A repetência da minha ingenuidade? Ou a repetência anunciada da minha própria teimosia masoquista? Qual, enfim, deveria ser a justificativa para esse velho sentimento que me dominava? Tirando o sorriso do rosto, consegui pensar e chegar uma pequena definição: fosse qual fosse o motivo, não poderia, não deveria, e, definitivamente, não teria uma conseqüência muito mais forte do que o que o havia provocado. Analisando todas as possibilidades reativas, entendi que a nulidade de uma era o que deveria acontecer. Não reagir pode parecer um ato covarde, uma fuga em desespero, pra bem longe do confronto. Que seja. Não me importo mais com o que os outros ou eu mesma vou pensar de mim. O que importa de verdade, agora, é manter a mente em relativa calma e a consciência leve. O dia seguinte se arrastou com tristeza aguda, mas já a esperava, e apesar de não ser capaz de conter o curso normal das lágrimas que teimavam em rolar voz ou outra, pude entender o quão natural isso era. A tristeza não era em si a reação a mágoa causada em mim, mas sim, a expressão da minha fé em que tudo pode melhorar. Até mesmo eu. A explosão de emoções, geralmente negativas, só me traz conseqüências iguais. Minha natureza é assim, sou originalmente fabricada de forma a responder agressiva e intolerantemente a tudo que me provoque medo, dor, ou, na pior das hipóteses, fuja ao meu controle. O famoso “gênio ruim”. Os anos e os fracassos me mostraram que, seja lá qual for o estímulo, a minha reação deve ser pensada. São lições de vida, dadas por pessoas que muitas vezes nem sabiam que as estavam dando. São pedras preciosas que guardo com carinho em meu baú de tesouros. Aprendi o poder da paciência. Ou melhor, ainda estou em fase de aprendizado. Quando a caixa estúpida do mercadinho me atendeu mal, o mundo inteiro se curvou para ouvir a saraivada de outras estupidezes ainda mais pesadas, que sairiam de mim para ela. Além da grosseria, eu estava sem óculos, o que me tornava ainda mais dependente das palavras dela. Medo. Ira. Abaixei a cabeça, tirei o dinheiro, paguei e quando recebi o troco, e quando peguei o que era meu, reagi. Abaixei-me até que minha boca ficasse de encontro ao seu ouvido, e sussurrei docemente: “Querida, não é assim que se fala com um cliente”. Sem sarcasmo, sem dureza no tom de voz. Talvez pela surpresa, talvez por reconhecer seu erro, ou talvez pra não me mandar a merda, não sei, ela não me deu resposta. Sequer me olhou nos olhos. Se tivesse levantado o rosto para mim, teria visto que não havia em mim sinal de raiva. Em pouquíssimos minutos, o tempo em que parei de ouvi-la para pegar o dinheiro e receber o troco de volta, foi o necessário para avaliar a situação mais profundamente. Domingo de tarde, hora de almoço, vários bares ao largo lotados de gente confraternizando, com cerveja e churrasco, num dia cinzento e calmo. Eu passeava com meus afilhados, entre refrigerantes, biscoitos e uma esfera impenetrável de amor. Ela estava presa a responsabilidade do trabalho, enquanto o mundo girava dessa forma tão prazerosa, da qual ela não poderia participar. Claro, não justifica a agressividade, mas explica. Retirei do baú uma das lições mais preciosas, respirei fundo e dominei qualquer reação negativa que meu corpo estivesse começando a produzir. Saí do mercadinho com a cara quente, a explosão havia se transformado em implosão, e por dentro tudo em mim brigava. Mas o importante é que, fosse qual fosse o resultado, eu já havia vencido. A mim mesma. Os olhos estavam tão inchados quanto uma massa de bolo com excesso de fermento. A dor sobre eles, velha conhecida, anunciava que uma queda d’água estava represada e que não ficaria segura por muito tempo. Conhecer a si mesmo é fascinante. Saber onde estão suas fraquezas, seus próprios obstáculos, dominar-se, vencer-se. Pode-se lutar contra o universo e sagrar-se vitorioso, mas nada é tão glorioso quanto vencer diariamente, um pouco de cada batalha interna. Delicadamente, para que nenhuma lágrima escorresse com um movimento brusco, fui ao banheiro, onde deixei que todas deslizassem livremente. Não senti pena de mim, tampouco raiva de quem me fizera mal. Enquanto o líquido morno descia pelo rosto, levava consigo os antigos paradigmas que explicavam de bate-pronto essas atitudes: eu sou burra, ele é canalha, eu não valho nada, ele menos ainda. Talvez a mente ainda quisesse usar estes raciocínios “lógicos” pra acabar logo com aquilo. Era mais rápido e prático, urgenciava o final da coisa toda. Mas o coração se negava a aceitar isso como base para classificar o comportamento de alguém que tem sentimentos. Há uma explicação plausível entre a vontade e a necessidade de agir. Se houve esse motivo para me magoar, como eu queria acreditar, certamente só quem o conhecia poderia esclarecer tudo. Mas eu também tinha o meu motivo para não querer saber. Quando enxuguei o rosto, estava mais em paz do que quando havia entrado no banheiro. Eu não tinha dúvida, em breve tudo ficaria bem novamente. Entender é o verbo mais difícil de se usar. Julgar, tipificar, apontar e condenar são atitudes mais fáceis, e que quase sempre nos tiram a capacidade de olhar pra nós mesmos. O tempo que passamos analisando e definindo a atitude do outro como boa ou ruim, deixamos de pensar se nossa reação é tão boa ou ruim quanto o que a motivou. Finalmente me convenci a seguir o trajeto que o rio faz, e não mais tentar desviá-lo para que corra por onde eu quero navegar. Não procuro mais a paz. Permito que a porta fique aberta para que ela entre quando quiser. Neste momento, sorrio diante da leitura do meu próprio pensamento. Poderia ser de um autor de livro de auto-ajuda, mas ainda é apenas o meu, verdadeiro e único, vivido e compartilhado com amor. L.

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