sexta-feira, 6 de março de 2009

Veja bem, meu bem

[Espere só até amanhecer. Por favor, não me deixe sozinha agora. O frio da madrugada me açoita a pele, as vozes desconhecidas da rua suja enchem-me de pavor. Segure minha mão só mais uma vez, diga que ficará, só mais um pouco. Conforte-me até que o medo passe; aqueça-me em seu abraço até que eu, esgotada, escorregue de seu peito para as profundezas do sono vazio, sem sonho, sem vida.]

Durante dias e noite eu desejei ardentemente que ainda estivesse lá. Quando pousava a cabeça, antes que o sono cedesse aos apelos do corpo cansado, a última imagem que me vinha à mente era a sua. Seu sorriso amável, sua voz distante. E antes que pudesse pintá-lo em dragão, era arrebatada para uma escuridão silenciosa e providencialmente calmante. Abria os olhos, acordada pelos cantantes primeiros fachos de luz da manhã; sua mão me acariciava num “bom dia” costumeiro e carinhoso. Quando os olhos acostumavam-se ao novo dia, você tomava parte na primeira brisa e ia-se embora, tão sorrateiramente quanto chegara em meus derradeiros sonhos. E novamente, a solidão invadia-me com violência, cortando tudo quanto via pela frente, fazendo sangrar os sentimentos bonitos, outrora cultivados na inocência de um amor verdadeiro.

Muitas vezes senti que poderia matá-lo. Seria capaz de rasgar cada fio de seus músculos com meus próprios dentes, para que pudesse sentir uma terça parte da dor que me causara. Queria acariciar seu belo rosto de barba bem feita e em seguida esfregá-lo na parede de concreto cru, até que virasse pó. Queria, sim, de todo o coração, arrastá-lo sobre uma rua em brasas, fazê-lo beber do próprio veneno e comer do mesmo amargo que me deixara.

Sei que nada disso seria capaz de afligir seu coração duro de pedra, afinal, foi me deixando banhada em lágrimas que você teceu a última teia, na qual, sem forças pra lutar, me deixei ser enredada. Sei que, após toda essa tortura, você ainda me encararia nos olhos, aquele olhar gelado, e sem a necessidade de palavras eu saberia que, fizesse o que fosse, jamais conseguiria penetrar seu coração. Seria possível retirar-lhe a chama da vida, sem nunca conseguir chegar perto de algo que valesse como sentimento.

Assim sendo, decidi recolher-me com minha dor, carregando nas mãos os fragmentos do coração que um dia pulsara vivo de um vermelho intenso, e cheio de amor por ti. Caminhei dias e dias, andando a esmo, vivendo solitariamente a mágoa do amor perdido. Em algumas noites, cheguei a soluçar tão alto que não era capaz de raciocinar com meus próprios uivos de dor. Em vários dias, ao enfrentar o espelho, perguntava a imagem refletida qual a razão dessa raiva tão absoluta por mim. Mas a mulher do outro lado do espelho também não sabia me dizer. Ela estava tão perdida e confusa quanto eu. Ambas não éramos metade da criatura curiosa e alegre que um dia eu fora. Juntas, ainda assim, não éramos ninguém.

Caminhei sob o Sol, enfrentei chuvas, atravessei tempestades de areia. Senti a pele esfacelar enquanto andava só, no escuro.

Um dia, me sentei e decidi montar o meu quebra-cabeça vermelho e ainda pulsante. Pedaço a pedaço, eu montei-o, sozinha, calmamente. Dia após dia, um pouco de cada vez. Todos os pedaços continham um pouco de você. Eu os sacudia, limpava na barra da saia e punha um a um em seu devido lugar. Ao final do hercúleo trabalho, ele estava pronto. Meu coração estava inteiro outra vez. E, sabe, não havia mais nada de você nele.

Quando me deitei, a Lua fazia um grande sorriso no céu divinamente ornamentado de estrelas. Sorri também, e agradeci por tudo que havia em mim naquele momento, por todos os momentos ruins, pois deles, havia feito um enorme caderno de lições, que, de agora em diante, levaria para a vida inteira.

Hoje entendo tudo o que passou como parte do processo. O que não entendo, desisti de buscar explicação. A vida não é explicável, não é mesmo? Não há manual de usuário e muito menos é possível trocar. Então, querido, agora que a maré deste lado do oceano está em calmaria, não creia que seja possível remar em seu bote até mim. A menina triste e amedrontada se foi junto com o amor por ti, e eu, tornei-me figura mítica renascida de minhas próprias cinzas. Tanto quanto quero, surjo em ventania e desapareço num assopro.

L.

Um comentário:

Fernanda Azevedo disse...

E com o coração inteiro, maleável apenas para quem sabe.

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