sábado, 26 de julho de 2008

“Era uma vez”

Ser honesto com outros é fácil. Difícil é mostrar-se verdadeiramente a si mesmo. Outros podem acreditar em suas palavras, pois não podem ver o que se passa em seu coração. Mas e você?

Uma das minhas habilidades mais praticadas é a de me esconder de mim mesma. Externamente, nada sinto, nada temo, nada me dói. Mas cá dentro, bem no fundo onde só eu sei existir, vejo a pessoa que realmente sou, que mergulha em dor com uma simples lembrança.

Há exatos 6 anos, meu sobrinho tinha apenas 1 mês de vida, eu era levada pelo mais puro instinto animal de proteção aos meus, a afrontar pessoas e suas leis e até mesmo, a afrontar meu sangue e a quem mais viesse apenas para tocar e ter certeza de tudo estaria bem com aquele ser que um dia fora meu, embalado em meus braços e em poucos anos, era meu motivo de tristeza profunda.

A dor de perder alguém que se ama, perder definitivamente, deve ser assustadoramente profunda e amarga. Dor essa que estive muito perto de sentir. Perto, tão perto, que seria capaz de sentir o sopro do projétil passando direto e indo alojar-se em outro corpo, o amigo. Maldita hora. Foram dois dias de intensa agonia, semi-desespero, medo quase tangente. Não me lembro de ter chorado na época, o alívio da não-perda somado ao medo pelo que poderia ter acontecido entorpeceram-me as demais emoções, não tinha mais tempo pra chorar, não consegui. Quando tudo acabou, olhei pro lado: ele realmente estava vivo, e como nos primeiros meses de vida, sentado em meu colo. No rosto, os danos físicos. Na alma, não sei, talvez um “foi por pouco”, bem típico de quem não nasceu pra temer o perigo.

Em mim, uma ferida jamais cicatrizada. E aí mora minha desonestidade com o mundo. Positivamente ninguém duvida de que isto seja episódio superado. Salvo uma vez, jamais deixei transparecer esta preocupação que me assombra dia e noite. Esta única vez, em que quase expus o que sentia, deu-se num cinema. Assistir ao filme no qual trabalhara meu namorado deveria ser nada menos que um prazer e um orgulho. Mas ao final do filme, as pernas tremiam, o mundo girava ao meu redor, precisava urgentemente de água. Na tela, um qualquer um dessa vida imunda de favela, tombava feito papel de bala, impulsionado por um pequenino projétil 38 milímetros. Saí do cinema amparada, bebi água, mas não passou de um “mal estar”.

Hoje, após uma desgastante semana no trabalho, energia concentrada nos projetos do futuro e o eterno medo com o passado, novamente um filme me fez sair de mim e perder o controle sobre os temores tão escondidos. Tudo ia bem, com as mortes, guerras e tudo que se vê ao sair na esquina de casa. O mocinho do filme se parecia com ele, especialmente o cabelo, os lábios e o nariz. O nariz é reprodução quase fiel. Tudo ia bem, eu disse. Menti. Nada ia bem aqui dentro. Toda vez é um universo que se revolve, monstros suspendem-se e atacam-se, dores, solidão, escuro num frio gélido é o que sobra no meio do nada. Tudo aqui dentro. Senti os membros retesarem-se quando o fim do filme aproximou-se, as pernas imploravam pra sair, a cabeça girava e os sons ecoavam grotescamente. Fora de mim, apenas um rosto sério acompanhava o desenrolar da trama, cujo final jamais poderia ser feliz para sempre. De repente, mas como já esperado – porque eu esperava isso? – o rapaz era pego pela força do projétil, que o arrancava de sua juventude. Daí em diante, o mundo todo se fez breu. O coração disparou, tirei de cima dos ombros o braço que me envolvia. Estava sozinha e perdida outra vez. Poderia ser ele... Poderia ter sido assim. Desisti, me permiti ser honesta comigo mesma, não escondi o medo, ou melhor, o pavor de ter estado tão perto de perder alguém que amava, de forma tão estúpida. Uma a uma elas vieram, de início silenciosas, mas apenas as primeiras. Em segundos, o corpo todo tremia alucinadamente e os soluços sacudiam-me ainda mais forte. Deixei que acontecesse, mas também não haveria outra forma, não conseguiria me parar, não tinha jeito. O medo aprisionado em mim tomou forma, saiu e passou derrubando o que via pela frente. Um temor infinitamente profundo de que todos os sonhos e amores tornem-se apenas lembranças de anos em paz. Parei de enganar a mim mesma, deixei que o medo saísse e como se quisesse mostrar o quanto era forte, arrebatou-me o corpo, me deixando em lágrimas e sofrimento pelo que nunca aconteceu. Quando acabou, o cinema estava vazio e lá distante, um funcionário aguardava e talvez pensasse que eu estivesse me emocionando com o final trágico do filme.

Saí do cinema ainda com o corpo em espasmos, algo extremamente forte havia acontecido comigo. Mesmo sabendo que era um filme, sabia que precisava ter certeza de que tudo estava bem. Liguei pra ele, estava tudo bem, na casa da família. Ao ouvir a minha voz, ele se preocupou, mas eu garanti que tudo estava bem. “Aconteça o que acontecer, eu te amo, muito e pra sempre.”

Na rua estava frio, mas em mim estava mais e os tremores não eram do frio de fora, mas sim de dentro. Ouvir aquela voz e saber que tudo estava bem me acalmou.

Agora tudo está bem. Minha imensa felicidade é saber que o amor é predominante em minha vida, estando junto ou separado. As lembranças serão inevitáveis, mas a criação de momentos de amor para sobrepô-las só depende de mim.

E tudo estará bem, enquanto estiver bem. :-D

L.

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